31.12.11

Thanks for all the fish

E mais um ano veio e mais um ano foi e eu aqui, continuo sentada na frente deste mesmo computador (ok, mentira, o computador variou algumas vezes no decorrer do ano), escrevendo textos com os mesmos teores, tendo sempre os mesmos problemas com amores e desamores, solitária, acompanhada, o que for: se chorei ou se sofri, o importante é que no blog escrevi.

E vocês aí do outro lado, lendo, (raramente) comentando, apoiando, dando risada e vindo me perguntar depois o quanto do que escrevo aqui é ipsis litteris e o quanto é ficção descarada. Sempre. Desde o começo. Se esse blog existe, é pra vocês e por vocês, porque, afinal, simplesmente por escrever, eu poderia guardar essas porcarias todas no meu HD e ser feliz pra sempre.

Já que eu adiantei a retrospectiva em alguns dias (não fez a menor diferença, já que nada mudou de lá pra cá), resolvi que o último post do último dia do ano seria meu agradecimento a todas as pessoas lindas que fizeram parte da minha vida esse ano.

Teve aqueles que chegaram logo no comecinho do ano pra bagunçar minha vida, e nem todos duraram no grude até o final - Alan, Andrézinho, Binho e Peu são alguns exemplos, mas, entre os que duraram, inclua aí Alinezinha, Glen, Dan...

Teve aqueles que chegaram na metade do ano e fizeram toda a diferença - nesse bolo, sintam-se incluídos todos os lindos da faculdade, incluindo aqueles que eu conhecia antes mas só fui pegar intimidade de seis meses pra cá: Mario, Reden, Rugal, Fernando, Pacheco, Vanessa, Rafão, Beco, Larissa... - e também os que caíram de paraquedas, tipo Hell.

Teve aqueles que apareceram no finalzinho e geraram noites e mais noites de resenha (e às vezes de stress) - Dani, Spike, Cau, Lucas (EU AINDA PREFIRO THE CLASH)...

Teve aqueles que já estavam na minha vida, mas se aproximaram mais esse ano e eu não vejo mais minha vida sem de jeito nenhum - Oi Greg! Oi Gabz! Oi Loo! Oi Minmins! Oi Paulinha!

E teve aqueles que sempre estiveram na minha vida, prosseguiram nela e que, espero, continuem pra sempre: Dude, Pri, Anine, Cris, Blao, Ed...

Esse post é mais uma forma de agradecer a todos por todas as risadas, todas as alegrias, todas as tristezas-que-geraram-produtividade, todas as resenhas, todas as agonias compartilhadas e, claro, a preferência!

E a todos aqueles por quem me apaixonei (e que me magoaram) ou que se apaixonaram por mim (e quebraram a cara): Sem vocês, esse blog estaria vazio, vazio. Obrigada por tudo, até pelo mal.

E que venha 2012!






(PS: não citei todos os nomes que fizeram parte da minha vida esse ano porque senão não seria um texto, seria uma lista telefônica. Mas se você já me aturou bêbada, já recebeu sms aleatória minha, se eu já disse que te amava ou que você era família pra mim, se você já me viu chorar... Acredite. Esse post também é pra você. Obrigada. Por tudo.)

25.12.11

Retrospectiva 2011

Em 2011, aprendi que:

- Morar sozinha é um desafio com o qual sei lidar muito bem na maior parte das vezes;
- Trocar de chefes assusta, mas pode ser extremamente recompensador;
- Eu não sei lidar com dois empregos e uma faculdade ao mesmo tempo;
- Amores vêm e vão, [s]são ases de verão[/s] mas amigos ficam para sempre;
- Uma grande paixonite pode virar uma grande amizade;
- Grandes amizades podem ir ralo abaixo se um dos dois desenvolver uma paixonite;
- Pular sem olhar direito onde vai cair invariavelmente dá merda;
- Dignidade não aumenta score;
- Felicidade não dá follower;
- Tristeza não tem fim, felicidade sim.
- A sorte sempre, sempre, sempre favorece os vagabundos;
- Na dúvida, sempre teremos Berlim.

Em 2011, ganhei:

- Amigos
- Inimigos
- Gatos
- Reputação
- Uma irmã que também é filha
- Uma família que é mais que família
- Mais dinheiro que achei que ia ganhar em toda a minha vida
- Muita dor de cabeça
- Free drinks
- Um nome en la noche


Em 2011, perdi:

- Amigos
- Inimigos
- Tempo
- Tempo
- Tempo
- Tempo

Em 2012, eu quero:

- Tudo o que tive em 2011. Só que mais, muito mais, bem mais, exorbitantemente mais. Mais risadas, mais alegria, mais dinheiro, mais amigos, mais sucesso, mais VIDA.

Até porque, nunca se sabe quando vai acabar ou quando você vai gastar seu último continue...

22.12.11

Ciclos

Passei a vida inteira pendurada na borda desse penhasco, me perguntando o que aconteceria comigo quando um dia eu acabasse caindo lá embaixo. Ia dia, vinha dia, e eu todo dia ali, contemplando as pedras lá embaixo. Será que cair dói? Será que, na metade do caminho, eu consigo aprender a voar? Será que um dia eu aprendo a descer por onde houver apoio? Aquele abismo representava todas as minhas dúvidas e esperanças, meus sonhos de criança e meus medos irracionais. Eu sempre tive pavor do penhasco e suas pedrinhas que se soltavam e iam se estatelar lá embaixo, no fundo do sem fundo que era a queda. Eu sempre me senti atraída pelo penhasco, como se fosse o vortex que encerraria todos os meus ciclos.

Enfim, um dia eu cresci - como todo mundo acaba por crescer algum dia - e acabei por me distanciar do abismo. Por muitos anos não vi aquela beirada que tanto me enchia de temor e assombro quando eu era menor. De vez em quando, voltava às origens e me perdia por horas a admirar o que eu achava que seria meu fim, mas sem tanta curiosidade. Sem pressa. Sabia que o dia ia chegar. Quanto mais o tempo passava, com mais tranquilidade eu observava a altura e calculava a queda. Achei que o dia nunca chegaria, tão pacata se tornou minha relação com aquele lugar.

Só que a vida gosta de nos surpreender. Quando eu menos esperava, o chão começou a, lentamente, receder sob meus pés. Quando eu menos esperava, a beira do abismo estava ali, olhando pra mim com aquela boca enorme, escancarada, parecendo querer me engolir por inteiro. Quando eu menos esperava... ah, mas é óbvio. As piores quedas sempre são quando a gente menos espera. E lá estava eu, pairando nos ares, e nada de aprender a voar, nada de dor, nada de apoio pras mãos. Só eu e o ar, cada vez mais rápido, e o chão, cada vez mais perto, e essa dormência, esse não sentir, cada vez me enfraquecendo mais. Nada mais formiga, nada mais bate, nada mais circula: eu, o ar, o chão, o vento, o chão, o chão, o chão...

Perdi o que tinha pra perder. Agora já foi. Do fundo do buraco onde me encontro, reencontro os velhos patamares da subida. Hora de reerguer, reestruturar, reconquistar. Mesmo que um dia perca tudo de novo.

Da borda do penhasco, vejo o mundo lá embaixo... E tudo começa outra vez.

9.12.11

Sobre putas e amadoras

- Eu gosto mesmo é de mulher - ela disse, me olhando nos olhos. - Tenho um pouco de nojinho de pau, minha relação com os homens é puramente profissional.

- Engraçado. Eu já tinha ouvido falar que a maioria das garotas de programa e atrizes pornô tinham essa vibe, mas achava que era lenda. E porque escolheu essa... digamos, área de especialização?

- Preciso ganhar a vida né, meu. Trabalhando, todo mundo se fode de um jeito ou de outro. Pelo menos tô fodendo alguém também. Fora que sempre rola de encontrar uma cliente legal que nem vocês, aí fica mais prazeroso trabalhar. Me empresta o isqueiro?

- Tá aqui. Vê se não acaba com todo o meu fogo ainda aqui, hein.

Ela riu. Tinha o riso gostoso de ouvir, Morena. Era daquelas pessoas bem expansivas, brincando com todo mundo, extremamente alto astral. Depois de dez minutos de conversa, eu já tinha esquecido em que tipo de lugar e situação me encontrava. Aliás, depois de dez minutos de conversa, e todo o vinho bebido antes, e a vodka, e o cheiro intoxicantemente doce do ambiente, esqueci até que era minha primeira vez num puteiro. A outra menina também era divertida. Minha amiga, mais experiente, tinha tratado de toda a negociação. Eu estava ali só pra curtir o momento.

Depois de alguns detalhes cuidadosamente acertados – preço, quantidade de tempo, local, etc – entramos no táxi rumo ao motel, sob os olhares medianamente curiosos e abertamente lascivos dos outros clientes do lugar. Eu mesma ainda estava meio em choque. Quando minha amiga sugeriu irmos a um brega, uma ideia que pareceu consideravelmente mais atraente à medida em que as garrafas de vinho vazias se acumulavam no canto da mesa, imaginei que a gente ia só pra ver qual era a do ambiente. Não passou pela minha cabeça sair de lá acompanhada de alguma menina.

Chegamos a um motel que eu só conhecia de passar na frente da porta, e pensei com carinho na ironia das coisas – logo do outro lado da rua, o prédio da primeira menina com quem dormi. Paguei o táxi e subimos para o quarto. Ela já foi tirando os sapatos e subindo o vestido impossivelmente curto, deixando à mostra uma calcinha minúscula de renda vermelha. Minha amiga e a outra menina seguiram o exemplo, e eu não me fiz de rogada – chutei de qualquer jeito minhas sandálias rasteiras prum canto qualquer do quarto e me sentei na cama.

Júlia e Morena já estavam aos amassos, as bocas coladas como se suas vidas dependessem disso. Outro tabu, outra lenda quebrada – a de que puta não beija na boca. Dei de ombros e fui conversar com a outra. Dentro de pouco tempo, nossas roupas já estavam no chão e nossas pernas entrelaçadas. Ela olhou meio divertida pra mim e perguntou se eu já tinha feito sexo com mulher antes. Para ela, eu era a cara da heterossexualidade. À guisa de demonstração, subi nela e mostrei todos os meus conhecimentos, enquanto ela ria e dizia que eu era sensível demais. Minha sensibilidade escorria por entre nossas pernas, ecoava nas paredes do quarto, marcava-se de leve nas costas morenas e tatuadas da mulher. Os seios dela tinham gosto doce. Achei que combinava com seu nome adotado – Morango.

Quando terminamos, meu coração aos saltos dentro do peito, percebemos que Júlia e Morena tinham sumido no quarto contíguo. Eu estava exausta, mas ainda tínhamos algumas horas pela frente. Tomei uma cerveja para me recuperar do meu orgasmo barulhento e partimos para o round dois.

- Bonita tatuagem, a sua. O que são essas flores?

- É uma trepadeira. Fiz na prisão.

Minha curiosidade foi atiçada, mas estava entretida demais segurando o riso para perguntar porque ela esteve na prisão. De mais a mais, achei indelicado, por mais que, àquela altura, ela já soubesse que eu era escritora e que minha curiosidade era estritamente profissional. Ela percebeu meu desconcerto.

- Que foi, amiga?

- Achei curioso uma prostituta ter uma trepadeira tatuada nas costas, só isso.

Ela me jogou um travesseiro e riu.

- Pra quem é virgem de puta, você tá muito engraçadinha. E eu aqui achando que você era toda inocente...

- Você também achou que eu era hetero, gata. Aparências enganam.

Ela puxou um cigarro da minha carteira, acendeu e deu um gole na cerveja, à essa altura já morna. Olhou pra mim de cima a baixo, eu que me encontrava estranhamente confortável com minha nudez na frente de uma total desconhecida. Acedeu com um ar de aprovação.

- Vamos comigo pra praia amanhã?

- Como é?

- Um cliente me chamou pra fazer um programa de dupla na praia, mas minha amiga não vai poder ir. Não vai rolar de ir sozinha. Vem comigo!

- Linda, numa boa... Você mesma jogou na minha cara ainda agora que eu sou virgem de puta. Agora tá me chamando pra fazer programa também? Só se o cara quiser que a foda seja registrada em um conto erótico e for exibicionista. Ainda não tô na vibe de curtir uma onda dessas não.

- Que pena, ia ser legal ter você lá.

Nos enrolamos nas toalhas e fomos no quarto ao lado ver como nossas amigas estavam. Sentadas na cama, conversavam alegremente. Morango gritou, “ei, minha gente, vocês não fizeram amorzinho gostoso ainda não?”

As duas riram e nos chamaram para sentar na cama. Morena puxou o celular e me chamou mais pra perto.

- Olha aqui - começou a me mostrar fotos - a gente tirou foto com a Thammy Gretchen. Não é legal?

Olhei para o visor do Galaxy e lá estavam as duas, com a filha da rainha do rebolado no meio. Dei risada.

- Vocês foram tirar foto com ela porque ela apoia a profissão ou porque ela é do babado?

- Os dois, amiga. Tô te falando. Pau é trabalho, a gente curte mesmo é chupar buceta. Olha, tem foto com a Gretchen também, e essa é minha irmã, e...



Passava das quatro e meia da manhã quando o táxi finalmente encostou na frente do meu prédio. O taxista, amigo das meninas, ia levar Morango para casa, depois de me deixar. Júlia e Morena ficaram pelo motel mesmo, o programa delas era um pouco mais longo. Me despedi da menina com um selinho.

- Foi um prazer te conhecer, viu, linda?

- Você também. Foi legal. Pena que você não curte praia, podia ir junto só pela curtição.

- Talvez da próxima vez que você estiver em Salvador - disse, enquanto batia a porta do carro.

Ela abriu a janela e me chamou de volta.

- Escuta, você é mesmo escritora ou falou isso só pra tentar impressionar?

- Sou mesmo escritora. Te juro que meu interesse hoje a princípio era puramente profissional.

- O meu, a princípio, também, mas as coisas mudam, né. Então, posso te pedir uma coisa?

- Pode. Se der, eu faço.

- Escreve sobre a gente.

4.12.11

Decadência

O mofo crescendo na parede nua
O coração que deixou de pulsar
O pássaro morto
Cinza as penas, contra o cinzento do muro
A barata que se contorce, as patas ao ar
Carne morta em decomposição
Seu olhar vidrado fitando o teto
Me atravessando num adeus silencioso

Por todos os lados, corrupção
A sombra da capela do cemitério
Carne fria, sobrevida
Gosto do que fica no limiar

Quando você morreu
Anestesiada que estava pela constância da morte
Levei duas semanas inteiras pra conseguir chorar.

29.11.11

Morte

O cadaver na beira da calçada olhou pra mim
Olhos baços, vendo o infinito

Ele parecia tão tranquilo
Tão dormindo
Encolhidinho
Escondidinho
Camuflado na parede cinza

Nunca mais vai voar
Mas, pelo menos,
Ele agora está livre.

28.11.11

À primeira vista

Você estava do outro lado de uma porra de um salão lotado e eu estava sem óculos, mas o vi mesmo assim. No justo no dia em que eu não podia me meter a aprontar nada com absolutamente ninguém. Minha atenção foi capturada não sei nem como nem porquê - só sei que olhei pra você e pronto. Target locked.

Alguém me explica porque seus pedacinhos diminutos - dados de bom grado, na conversa que se seguiu à identificação - não saíram até hoje da minha cabeça. Alguém me explica porque, pela primeira vez em muito tempo, minhas memórias não são meramente físicas, mas principalmente psicológicas e emocionais. Alguém me explica o que está acontecendo comigo, porque estou tentando escrever uma história pra nós dentro de mim e está tudo tão confuso e cheio de buracos que não consigo encontrar um único ponto de lógica.

Alguém me explica, enfim, porque tenho tanta certeza de que, por mais que eu tente, nunca mais vou ver você.

E porque infernos isso dói tanto.

26.11.11

Guilherme

Eu tinha lá meus 16 anos e tava às voltas com problemas típicos de uma adolescente de seus 16 anos. Tá, típicos porra nenhuma, a não ser que seja hora de abandonar a fé na humanidade e achar que todo mundo aos 16 anos é ou foi que nem eu era nessa idade. Deixa eu começar essa bosta de novo.

Eu tinha lá meus 16 anos e tinha acabado de chegar em casa, podre de bêbada e coberta de hematomas de skatista frustrada, às 11 da noite de uma quarta-feira. Pra melhorar o quadro, tinha uma prova de matemática no dia seguinte de tarde para a qual não tinha estudado porra nenhuma e eu já era repetente, se me fudesse de novo meu pai ia metaforicamente comer meu rabo. Entrei em casa, então, pé ante pé – falhando miseravelmente em ser silenciosa, claro – e me enfiei no quarto pra tentar fazer com que aqueles números fizessem algum sentido na minha cabeça entoxicada. Mal tinha tirado os tênis sujos e arrebentados e aberto o livro no colo quando ouvi as batidas na porta.

Minha mãe, com cara de estar tão fora do ar quanto eu, tava só de calcinha e sutiã. Nada de muito incomum, considerando que morávamos só nós duas e ela sempre foi meio adepta do naturismo. O problema é que quando eu cheguei a porta do quarto dela tava fechada, o que me fez pensar na hora que algum dos “amigos” dela da internet estava na área. O cheiro forte de maconha vindo da porta vizinha entreaberta me fez identificar quem era.

- O Guilherme tá aí, né?
- Tá sim, filha. E ele quer falar com você. Perguntou se você queria dar uns pegas.

Olha, eu até que gostava desse cara. Era bem mais novo que minha mãe – apesar de ainda bem mais velho que eu – e curtia uns sons bem loucos. Até era meio gostoso, mas eu olhava pra ele daquele jeito “quando eu crescer quero arrumar um peguete tipo assim”, sabe? Era como se fosse aquele tio-irmão-mais-novo-dos-pais que levam a gente pra putaria escondido, acabam virando amigões e péssima influência, que todo mundo menos eu teve em algum momento da vida. E fumava pra caralho, e me ajudou a convencer minha mãe que eu não estava vivendo uma espécie de Cristiane F. cover só porque estava andando com punks e usando drogas leves. Mas eu nunca tinha fumado com ele antes. Pareceu uma idéia legal.

- Beleza, deixa só eu terminar com esse logaritmo aqui que eu já vou.

Depois de tentar umas três vezes encontrar algum sentido na merda que eu estava fazendo com aqueles números, toquei o foda-se e entrei no quarto escuro. Guilherme me esperava, em pé, encostado na parede do quarto, só de zorba branca e com um novo baseado, ainda virgem, entre os dedos. Acho que o álcool me ajudou a achar aquilo tudo muito normal, ou então o meu senso de normalidade já tava bem fodido àquela altura, e sentei na beira da cama.

- Vai acender essa porra aí ou vai ficar só de enfeite, Gui?
- Porra, Leti, você é tão selvagem quanto tua mãe, sabia? - ele riu da minha cara, e me entregou o beck bonitinho, bem fechadinho, como por muito tempo eu não fui capaz de fechar - Faz as honras.

Peguei meu isqueiro no bolso da calça rasgada e acendi. A erva era bacana, subiu gostoso pra cabeça. Dei uns dois tragos e passei a bola.

- Seguinte, guria. Tem um lance que preciso conversar meio a sério contigo.

Olhei de rabo de olho pra minha mãe, que tinha se deitado do outro lado da cama. Ela não fumava, dizia que nunca teve coragem, mas curtia ficar por perto quando eu fumava em casa porque gostava do cheiro. Acho que na real ela curtia era ficar meio marolada, até fiz algumas piadas com ela sobre isso, mas ela jurava que nunca bateu nada. Dessa vez ela tava quieta. Era uma situação muito, muito esquisita. O clima parecia tenso, ela quieta ali do lado, o namorado dela de cueca, o quarto escuro e a fumaça rodopiando no ar parado de início de primavera. Olhei pro cara, os olhos já meio pesados.

- Falaí, brother.
- Você sabe que eu gosto da tua mãe pra caralho, né?
- Espero que sim, porque você só vive aqui agora. Tava me perguntando quando que vocês iam me pedir pra parar de te chamar de Gui e começar a chamar de, sei lá, padrastinho ou qualquer merda do tipo.
- Gracinha. Mas tipo que eu sempre tive uma espécie de fantasia, tá ligado?
- Tipo de super homem? - ri, meio chapada, da minha própria piada sem graça.
- Não, porra. Fantasia, fantasia. Ah, qual é, Leti, você sabe do que eu tô falando. Tu pode ter essa cara de santa e convencer meia dúzia de pessoas que não te viram mais que duas vezes na vida que tu presta, mas na real não é como se você fosse uma virgenzinha inocente.
- Tá, cara, fantasia. Saquei. E o que é que isso tem a ver comigo?
- Então. A fantasia era que um dia eu ia conhecer uma mamãe enxuta que tivesse uma filhinha gostosa e...
- ...cara, para. Para tudo. Você não vai dizer o que eu acho que vai dizer.
- ...então. Você é bem gostosinha, com esse jeito toda rebelde revoltada porra louca. Podia ser um lance bem bacana. Topa?
- Brother, essa erva é do caralho mesmo. Cê tá alucinando aí. Quantos desses tu já fumou antes de eu chegar mesmo?
- Tô falando sério, porra.

Desacreditei. Não, sério, desacreditei total. Olhei pra trás e minha mãe olhava pro teto, como se não estivesse ali. Filha da puta. Ela sabia qual era a do cara e não se intrometeu. Sei que toda adolescente odeia os pais em algum ponto, faz parte da nossa formação como seres humanos contestar todo tipo de autoridade, mas acho que nunca odiei tanto minha mãe como naquele momento. Olhei de volta pro Gui sem acreditar. Tomei o baseado da mão dele e dei mais umas três puxadas bem longas pra tentar me acalmar. Depois me dei conta de que ficar mais doidona do que eu já tava não ia ajudar muito naquela situação. Apaguei o beck no cinzeiro do meu lado e acendi um cigarro. Pensei em gritar com ele, mas minha cabeça já tava no teto e eu achei que não valia a pena me estressar tanto.

- Cara, é o seguinte. Eu só tenho 16 anos.
- Eu tô ligado. Mas vendo como você bebe, fuma e cai no mundo, ninguém diz.
- Foda-se. Se liga. Eu só tenho 16 anos. Mal sei lidar com sexo, cacete, e olha que já tem um tempinho que eu não sou mais virgem. Você quer que eu lide com a ideia de uma porra de um menage, cacete? Com minha mãe e um cara... Sei lá, bicho, tu é o quê? Vinte anos mais velho que eu? Isso não é, tipo, crime?
- Ninguém precisa saber. E não é crime se for consensual e seus pais não processarem...
- Eu vou saber, cara. Eu vou saber. E se minha mãe tivesse um pingo de juízo na cabeça, ela te denunciava só de você pensar numa porra dessas. Tá achando que é quem, Humbert Humbert? Olha, eu não tenho cabeça nem estômago pra digerir essa merda não. Eu tenho 16 anos, tô bêbada, tô chapada pra caralho, tenho prova de matemática amanhã e não estudei porra nenhuma. Vou voltar pro meu quarto e fingir que você nunca me deu essa ideia errada, beleza?
- Po, Leti, pensa com calma. Se mudar de ideia só falar.
- Calma é o cacete. Não acho que eu vá mudar de ideia, não antes dessa maconha toda transformar meu cérebro em geléia. Tchau, Gui. Boa noite, mãe. Durmam bem. Fodam bem na minha intenção. Sei lá, façam seja lá que porra vocês pretendem fazer depois daqui.

Saí do quarto batendo a porta. Sentei na cama tentando entender o que tinha rolado, mas não caía a ficha de jeito nenhum. Abri o livro, tentei estudar, não deu. Levantei, bati na porta do quarto ao lado. Minha mãe abriu, meio espantada. Tossi, meio sem graça, sem saber o que fazer com as mãos ou pra onde olhar. Guilherme me olhou com os olhos brilhando. Limpei a garganta e consegui encontrar minha voz.

- Olha, seu filho da puta, não mudei de ideia não, mas rola de me dar aquela ponta que sobrou?

20.11.11

Banzo do Milênio

Tentei de tudo, absolutamente tudo, mas foi em vão. O álcool não me libertou de minhas amarras; antes, fincou meus pés no chão e tornou minhas costas e pálpebras pesadas. Nublou minha mente, aniquilou meu espírito e me transformou numa poça destroçada de arrependimentos. As drogas também não me libertaram - me fizeram olhar para dentro de mim e me mostraram tudo aquilo que tenho de podre. As drogas me ensinaram o significado da palavra "vergonha" e me jogaram num lugar escuro, úmido e desagradável. Desisti delas. Tentei também o vegetarianismo - a onda da privação de carne me pareceu algo leve e tranquilo o suficiente para talvez fornecer o bálsamo que meu espírito precisava -, mas o que acabou acontecendo foi uma terrível impaciência e falta de piedade com tudo o que não conseguia se colocar no mesmo patamar de pseudo-evolução-espiritual que eu. Fritei umas fatias de bacon, aquela loucura precisava parar. Tentei música, filmes, seriados, café, pornografia, masturbação, consumismo, autoflagelo, sexo com desconhecidos, dança, poesia, literatura barata, violência, vandalismo, qualquer merda que me anestesiasse e me distanciasse de tudo o que está acontecendo comigo. Nada deu certo. Continuo insuportavelmente vazia, me conformei em ser vazia, vou me permitir ficar vazia até que o vazio não signifique mais nada.

3.11.11

Sapiossexualidade

O instituto Dianna de estágios em relações e relacionamentos públicos divulga 01 vaga para NAMORADO TRAINEE. Pré-requisitos:

  • Graduação nas áreas de Artes, Ciências Humanas/Sociais ou Letras (concluída ou em curso - a partir do 5º semestre);
  • Conhecimento em informática de mediano a avançado;
  • Boa redação e clareza de raciocínio;
  • Criatividade;
  • Conhecimento profundo de tecnologia aplicada ao entretenimento (videogames), artes gráficas (quadrinhos e cinema), música, interpretação (especialmente em RPG) e literatura.
  • Preferencialmente residindo em Salvador e região
Interessados, favor enviar currículos para donadoblog@domínio.com

15.10.11

Bárbara

Era uma explosão sensorial. Beirava o excesso de informação, mas, ainda assim, mantendo um mínimo de bom gosto. A pele muito branca, o cabelo muito preto, o batom muito vermelho. Os olhos variavam entre o cinza claro da luz do sol e o azul escuro das nossas noites à luz de velas, e viviam pintados de muito preto-cinza-fumaça. Cortesia da Avon ou da Natura ou sei lá onde que ela achava tanta maquiagem escura. Eu achava misterioso, dramático, profundo. Hoje penso que só fazia dar àquele rosto uma aparência meio de panda. Até o nome dela tinha algo de feral, de animalesco, de selvagem: Bárbara.

Pior que a desgraçada era gostosa pra caralho. A cintura fina, gostosa de abraçar, e as pernas longas e macias e lisas e agradavelmente roliças que se embolavam com as minhas, misturando nossos suores e secreções. A boca tinha gosto de cigarro de cravo, de vodka e cereja, de pecado daqueles que te levam direto pro segundo círculo de Dante. Os seios redondos, enormes, macios, os mamilos rosados olhando pra mim, apontando pra minha cara e me desafiando a decifrá-los. A pele... bom, a pele tinha um gosto só dela, meio de suor e feromônio. Pra mim ela sempre me pareceu meio suja, mas não de um jeito nojento, sabe? Suja-chic, suja deliberada, suja de auto-afirmação. Tudo nela, aliás, era sujo – os pensamentos, os desejos, as palavras.

Não é que eu nunca tenha comido uma mulher antes dela. Aliás, talvez seja: antes da Bárbara, só tinha comido meninas. Acho que ela foi a primeira Mulher, assim mesmo, com eme maiúsculo, com quem eu tive a oportunidade de foder. E fodíamos. Diariamente, onde quer que nos encontrássemos, da forma como desse. E, puta que pariu, era bom. Era tão bom que eu até esquecia quem eu era. Comer Bárbara anulava totalmente meu ego, meu superego, meu id, meu caralho a quatro. Eu era só sensação. E ela percebia isso, e se aproveitava disso, e lá vou eu, moça-certinha-com-reputação-a-zelar, me viciando e me perdendo e pedindo perdão a deus toda santa noite antes de dormir só pra pecar de novo no dia seguinte com a consciência mais leve. Ela se divertia com minha confusão. Adorava rir da minha cara e desconstruir pedacinho por pedacinho de tudo que eu acreditava e dizia e julgava, até me deixar mentalmente e emocionalmente tão incapacitada quanto fisicamente. Vagabunda sádica. Foi depois da Bárbara que eu virei atéia, porque até a capacidade de acreditar ela me sugou.

Viver com ela era um pesadelo Lynchiano. Como toda mulher que tem o poder de virar o mundo de cabeça pra baixo – e ela era dessas –, Bárbara era completamente maluca. De eu chegar em casa, cansada do trabalho, e dar de cara com ela nua, sentada no chão na frente do espelho, um bocado de velas acesas, dizendo que se o apocalipse começasse ela queria ser a primeira a ir pro inferno, e gritando que queria que eu a fodesse como a puta baixa que era, sem o menor respeito pela decência ou pelos vizinhos. De ler minha sorte na palma da minha mão ou nas cartas de tarô e dizer que eu só seria feliz sozinha, ou com um homem, ou que eu ia morrer antes dela e que ela passaria o resto da vida de luto e se isolaria num convento. De brigar com facas – ainda tenho as cicatrizes nas costas da mão e na coxa direita – e depois fazer sexo violentamente, e acabar a noite com ela ronronando feito um gatinho implorando pra eu nunca abandoná-la. Eu sempre prometia, meio emocionada, meio preocupada.

Um dia, ela é quem me abandonou.

Abri a porta com cuidado, sem saber qual seria a palhaçada da vez. Estava preparada pra encontrar um bode sacrificado em cima da mesa de jantar, um palco de teatro vaudevilesco, um rastro de pegadas de sangue, uma orgia de doce e pico, qualquer merda dessas, mas vê-la ali, sentada calmamente no sofá, as malas prontas aos pés, me deixou boquiaberta. Bárbara me esperava, vestida  com uma de suas roupas mais convencionais, a cara limpa de maquiagem. O cabelo preto, comprido, escorrido, preso numa trança. Já tinha visto Bárbara com todas as roupas – ou falta delas – possíveis, com as mais variadas maquiagens experimentais, mas nunca a vi tão... esquisita. Disse que não aguentava mais, que viver comigo tava transformando ela em alguém que ela não reconhecia, que me amava mas que não dava pra ir em frente, e começou a chorar. Foi nessa hora, acho, que entrei em parafuso. Eu queria gritar, chorar, implorar, mas só consegui ficar parada ali, no meio da sala, a bolsa e a chave de casa ainda nas mãos, quando ela levantou, colocou a chave dela em cima da mesa, me deu um beijo no canto da boca e saiu sem dizer mais nada. Levou uma meia hora pra ficha cair.

Ainda hoje tento entender. Ainda hoje não me recuperei do furacão que ela foi em minha vida. Ainda hoje é pensando nela que me toco furiosamente. Ainda hoje não me conformo, e continuo procurando pedacinhos dela em tudo que é vagabunda louca que encontro pelos becos escuros da vida.

Acho que ela estava totalmente errada. Não foi ela quem se transformou em mim aos pouquinhos. Eu que me transformei nela.

Perdas sem danos (ou a arte de perder)

Se desfazer das coisas é umm hábito viciante.

Começa quando, por inocência ou convicção ou simplesmente pressão da sociedade, você decide abandonar a carne. Todo mundo te chama de louco, mas você tenta mesmo assim e vê que nem é tão difícil, nem é tão desafiador. Claro que tem seus percalços, mas não são tão difíceis de contornar. Então você parte para algo mais complicado, e resolve abandonar o refrigerante também. Percebe que, no processo, acabou abandonando uns bons 10kg e metade das roupas do armário, que já não te servem. Mas não é o bastante, nunca é, e ai é que fica perigoso, porque a gente sempre quer mais do que já conseguiu. Mesmo quando o negocio é perder.

Elizabeth Bishop disse que a arte de perder não é tão difícil de dominar. É verdade. Começo a desejar perder a bebida, o cigarro, as noites perdidas - me pergunto se é possível perder algo que se perde leviana e deliberadamente - as drogas, os amigos, o café, as cores, os amores, o sexo, até por fim perder a identidade e não ter mais o que perder. Não sei o quanto mais sou capaz de perder antes de me perder de mim mesma, mas acho que não seria uma perda tao grandiosa assim. Afinal, eu mesma já estou perdida. 

Quem sabe me perdendo pelo caminho eu não seja capaz de me encontrar?

12.10.11

Dias

Um daqueles dias em que a tristeza te pega de jeito pelo cangote e te joga na cama sem mais nem porque e não te dá nem meia chance de espernear, de contestar a injustiça de tudo aquilo. Um daqueles dias que começa já de noite, as horas se arrastando numa espiral rumo à madrugada, tudo sem sentido, sem objetivo, sem nada. 

Sei lá. Essa falta de perspectiva é o que me mata. Esse não saber pra onde se vai e de onde se está indo. Essa... insegurança na vida. Parece que esqueci de crescer, sei lá. É de festa em festa, de bar em bar, e o dinheiro que vai se acabando, e a diversão que se torna rotina e começa a azedar, e a sensação de que se está se permitindo o lazer por pura obrigação pra desafogar de todo o trabalho, estudo e sei mais lá o quê. 

E é aí que eu percebo que trabalho feito uma condenada seis dias por semana noventa horas por mês e estudo feito uma louca quatro dias na semana sessenta horas por mês e tudo isso pra que? Pra ser alguém na vida e ter dinheiro pra realizar meus sonhos? O dia em que eu conseguir juntar dinheiro pra realizar meus sonhos estarei velha demais pra sonhar, quiçá pra aproveitar tudo o que juntei. Esse dinheiro vai virar remédio, internação hospitalar, asilo pra me confortar na velhice que se aproxima com passos lépidos e a boca escancarada de fera voraz. E aí eu vou deixando de viver pouquinho em pouquinho, só pra poder um dia morrer em paz. 

É isso: a gente vai vivendo um dia de cada vez só pra poder morrer com dignidade. Pois eu me recuso a morrer com essa dignidade plastificada, forjada, planejada. Eu quero viver. Eu quero a vida correndo nas minhas veias com a velocidade do tiro que destroça as entranhas do traficante morto na sarjeta. Eu quero a vertigem, a emoção, quero a porra do pathos todo. Quero curtir a trocentos milhões por hora a onda de viver.

E quando baixa a onda, minha bad trip consiste em me perguntar, bêbada, numa mesa de bar: pra que é que serviu essa merda toda mesmo, se no final continuo no mesmo ponto onde comecei?

4.10.11

Dia 04 - O Imperador

Que gatos são criaturas com porte de realeza e acostumadas a ter suas demandas cumpridas, todo mundo já tá cansado de saber. A questão é que, lá em casa, o rei mesmo era meu pai, e ele já tinha declarado com sua voz de trovão que nem pensar, chega de gato nessa casa, não aguento mais você e essa sua mania esquisita de adotar tudo que é felino que vê pela frente e ainda por cima colocando nome de gente. É um tal de Raoul, Edgar, Lili, Léo, o caralho a quatro, e agora Vicente? Não senhora, não debaixo do meu teto. Então, com muito pesar, coloquei o gato cinzento raiado de cinza mais escuro que tinha encontrado debaixo da marquise durante a chuva do dia anterior, no patamar da porta da frente e fechei, Tinha certeza de que ele conseguiria se virar sozinho. Afinal, crescera na rua, e, se fosse esperto, ficaria por perto dali onde tinha conquistado uma amiga e comida fácil.

Voltei pra dentro do quarto e me enrosquei na cama com Raoul, o gordo, enquanto tentava me convencer de que tudo ficaria bem. De alguma forma, o gato parecia ainda maior do que eu me lembrava, como se para ocupar o próprio espaço e o do irmãozinho que quase ganhou. Nem senti o tempo passar. Acho que devo ter cochilado, sei lá. Só sei que, quando dei por mim, a gataiada toda estava empoleirada na minha cama, o mostrador do relógio digital me dizia com seus olhos vermelhos que eram quase três da manhã, e tinha alguma coisa raspando minha janela por fora.

Demorei um pouquinho pra conseguir sair da cama sem desalojar todos os outros ocupantes, e fui meio com medinho ver que diabo de barulho era aquele. Se aquilo fosse um pesadelo ou um filme de terror, com certeza um monstro estaria me esperando do outro lado, mas eu tinha alguma esperança de estar acordada de verdade. Respirei fundo e contei até três antes de abrir a janela, e, do outro lado da tela, Vicente miava baixinho, encarapitado num galho de árvore. Soltei a tela em uma das pontas e acolhi o bicho, meio sem saber o que estava fazendo. Se meu pai me pegasse com ele ali, não ia ter “ele me seguiu até em casa, posso ficar com ele?” certo, que esse não é o tipo de papo que cola cinco vezes. Mas essa noite eu não ia deixar o bichinho dormindo na rua. Fechei a janela de volta, avisei aos filhotes que era para fazerem silêncio e desci pra buscar comida, tanto pra eles quanto pra mim.

Era uma hora um tanto incomum pra se pegar comida de gato na cozinha, então era importante que eu fizesse o mínimo de barulho possível para que meu pai não percebesse que eu estava por ali. Tudo bem que ele, minha madrasta e meus avós deveriam estar no décimo sono, mas velho tem tudo sono leve e meu avô andava com a mania de acordar no meio da madrugada pra ir ao banheiro. Desci as escadas e entrei na cozinha na ponta dos pés. Abri as portas dos armários devagarzinho, com medo de fazer barulho, mas não encontrava a ração em canto nenhum. Encontrei uns biscoitos muito esquisitos, botei alguns em um prato pra mim, peguei um pouco de carne moída crua e sem tempero na geladeira pro gato e comecei a subir de volta, quando vi uma sombra larga e muito alta se mexendo no corredor lá em cima. Só podia ser meu pai. Entoquei a carne atrás de um vaso de plantas (aliás, o que um vaso de plantas estava fazendo no meio da escada?) e continuei subindo devagar, matutando uma desculpa qualquer pra estar comendo biscoitos as três e meia da manhã, quando vi Vicente andando tranquilamente. No teto. Não fazia o menor sentido, mas fiquei mais preocupada em chamar a atenção dele pra ele se esconder do que com o fato de que as leis da gravidade aparentemente foram revogadas por algum juiz meio maluco. Mas nessa justa hora o gato resolveu começar a miar. Ouvi barulhos de passos ecoando ao meu redor, e aquela escada parecia nunca mais ter fim. Comecei a correr, agora verdadeiramente assustada, mas a porta do meu quarto não aparecia de jeito nenhum. E o gato miando, no teto, nas paredes, por todos os lugares.

Abri os olhos. Demorei para reconhecer meu quarto de verdade. Os miados continuavam. Abri a porta e deixei Edgar, o único gato da casa, entrar e se alojar na minha cama, enquanto eu me arrumava para ir trabalhar. Definitivamente, amanhã não vou dormir com carta de tarô nenhuma debaixo do travesseiro.

3.10.11

Dia 03: A Imperatriz

Fazia tempo que eu não via Regina. Até me sentia meio mal por isso, porque sempre fomos muito próximas, mas a correria da vida fez com que simplesmente sumíssemos uma da vida da outra. Por outro lado, desde que nosso relacionamento terminou que as coisas às vezes ficavam meio tensas quando nos encontrávamos pessoalmente, e com o tempo nem pela internet nos procurávamos mais.  Fomos desaparecendo uma da outra, até que se passaram bem alguns anos sem notícias.

Por isso tomei um susto quando recebi uma ligação desesperada do Alex dizendo pra eu ir pro hospital porque ela precisava da minha ajuda. Por mais distantes que estivéssemos, eu nunca negaria ajuda a alguém que já amei tanto, então peguei correndo a bolsa e fui.

Encontrei os dois na porta. Alex parecia fisicamente bem, mas a cara dele estava desesperadora. Mais desesperadora ainda era o quadro como um todo: Regina estava deitada numa maca, a barriga quase explodindo de gravidez. Eu não sabia como reagir àquilo. Parecia uma gata prenha de uma dúzia, enorme, redonda, a cintura bem marcada que eu tanto amava completamente deformada, as pernas delicadas incapazes de sustentar o peso do corpo.

O que mais me confundia, na verdade, era a gravidez por si só. Regina nunca gostou de homens na vida – se autodefinia como uma estrela dourada, termo corrente pra lésbicas “com selo de garantia”, e, pelo menos quando estávamos juntas, dizia que se quiséssemos mesmo ter Olga e Catarina, eu é quem teria que abrir mão das minhas formas pra fazer inseminação, porque se recusava terminantemente a engravidar, ficaria ridícula masculina como era, etc. Naquele momento, masculina seria a última palavra que eu usaria para defini-la. Os cabelos mais compridos do que eu jamais vira – a franja chegava na linha do queixo – e uma aparência geral de fragilidade e sofrimento impossível de definir com palavras conferiam ao quadro um langor insuportavelmente delicado. Passei alguns instantes de choque observando a cena antes de conseguir abrir a boca pra falar o que quer que fosse.

– Como foi que isso aconteceu?
– Não sei! – me respondeu, a voz sufocada. Parecia doer até para respirar.
– Como, não sabe?
– Um belo dia, minha menstruação não veio. Depois de um mês assim, fui no médico e ele me deu as “boas novas”. Não lembro de ter ido pra cama com homem nenhum. Não lembro de ter injetado porra nenhuma no útero. Não lembro de nada.

Um espasmo mais forte de dor fez com que o rosto de Regina se distorcesse de uma forma que partiu meu coração. Tava na hora de fazer alguma coisa. Peguei a maca e corri com ela hospital adentro, vagamente notando no caminho que Alex havia desaparecido, possivelmente para fumar. Corremos por corredores brancos, através de portas brancas, era tudo muito branco, eu já nem sabia mais onde estava. Até que ouvi Regina gritando.

– Chega, Lili! Chega! Tá na hora! Você vai ter que resolver isso!

Nunca fiz um parto na minha vida, mas era bem familiarizada com a parte da anatomia de Regina que eu teria que encarar agora. Nem nos meus sonhos mais loucos imaginei trazer ao mundo o filho da minha ex namorada, mas pelo visto era o dia internacional do surrealismo, então não demorei muito pra me preparar psicologicamente. Me coloquei de frente para as pernas arqueadas da pobrezinha, separei seus joelhos e, sem me preocupar com água quente ou toalhas brancas, pedi que ela empurrasse.

Regina não precisou fazer muito esforço. O que quer que fosse aquilo saindo de dentro dela queria tanto sair quanto ela queria se livrar da dor. A criatura rastejou para fora dela, garras rasgando a carne e ensopando a confusão de panos brancos de sangue vermelho escuro, depois rosado, depois só água. Rastejou e rastejou, até se aninhar no topo da barriga da mãe. Não era uma criança. Não sei descrever aquilo; parecia um alienígena, um pokémon, um demônio, sei lá o que diabo era. Parecia feito puramente de carne e osso, sem pele, sem pelos, sem nada que o identificasse como um ser vivo exceto os olhos, muito negros, muito brilhantes. A porra da criatura era rosa, aquele rosa-carne de pele leitosa suja de sangue, parecia mesmo que era isso porque era um rosa meio raiado de branco, e me olhou tristemente por alguns segundos antes de parar de se mexer. Morreu ali, ainda sobre o ventre de Regina, o cordão umbilical enorme ainda preso à hospedeira. Entrei em pânico. Não queria que Regina visse aquilo, mas era tarde demais. Ela estava em choque, não conseguia falar, os olhos arregalados presos naquele pedaço de pesadelo.

–  Rê, você tá bem?

Silêncio.

– Rê, fala comigo! Rê, me escuta, nada disso é real, tá? Isso é um pesadelo. Uma porra dum pesadelo absurdo e assustador, mas ainda assim um pesadelo. Olha pra mim, Rê!

Mas ela não me respondia. Os olhos vidrados, a boca entreaberta, e eu podia jurar que ela não estava respirando. Tornei a correr pelos corredores, empurrando a maca em busca de um médico, um curandeiro, alguém que pudesse socorrer minha amiga. Não pode acabar assim, não podia deixar ela morrer. Corri feito louca, e parecia presa no tempo. As portas abertas, os corredores desertos, Jesus, onde foi que a gente veio parar?

Dei com uma porta fechada. Chutei com toda a força que minhas pernas bambas de terror permitiam e puxei a maca na direção dela. Uma luz muito forte me ofuscou. Um barulho vagamente eletrônico disparou em meus ouvidos, e, atordoada, consegui abri os olhos.

O celular marcava seis horas da manhã e o alarme era insuportavelmente irritante. Esfreguei os olhos e tirei a carta de tarô de debaixo do travesseiro. A Imperatriz me encarava com seus olhos tranquilos. Esfreguei os meus e fui cuidar da minha vida.

2.10.11

Dia 02: A Sacerdotisa

Do cantinho do mundo em que eu me encontrava, sabia que nada poderia me atingir. Me reservo o direito de não fazer nada. Do meu canto, do meu refúgio, vejo o mundo. Vejo tudo, observo tudo, sem pressa nem vontade. Vi minha vida se desenrolando diante dos meus olhos, com a paciência que só quem se sabe por ora impotente conhece a fundo. Vi os caminhos que se abrem à minha frente e calculei o próximo passo com cuidado. Eu vi o futuro. E só depois de decidir o que quero me dei ao trabalho de levantar do meu trono, depor as religiões e tocar a vida.

1.10.11

Dia 01: O Mago

Olhei pra cima e vi um universo inteiro de possibilidades. Olhei pra baixo e encontrei meus pés descalços contra o chão de terra batida, os grãozinhos entrelaçando-se com meus dedos e dando aquela sensação gostosa de fazer parte de alguma coisa maior. Suspendi de leve a túnica clara, tão leve, que usava. Organizei meus materiais e me pus a trabalhar. Não sei bem o que pretendia fazer, mas sabia que tinha que fazer alguma coisa. Algo precisava ser mudado, transformado, transmutado. A mudança tem que vir de dentro pra fora, algo me dizia. Mudei. Mudei meu jeito de encarar a vida, de pensar, até mesmo meus ideais que eu julgava me definirem. Mudei tudo, para poder mudar o mundo. E só então consegui fazer alguma coisa. Mergulhei de corpo e alma no trabalho, e, quando por fim pude dá-lo como encerrado, me satisfiz. Despi minhas roupas de transição e voltei pra casa, os dedos tintos de mercúrio e destino. O mundo voltou a seu eixo, como sempre há de voltar.

30.9.11

Dia 00: O Louco

Todo dia eu acordo e os raios de sol entram pelo mesmo ângulo pela janelinha do quarto, diluídos pelos prédios e paredes e janelas. Todo santo dia é dia de acordar escovar os dentes tomar banho comer juntar as coisas na mochila sair correndo, assim mesmo, sem vírgulas nem pausas pra respirar. Todo dia chego atrasada. Todo dia corro contra o tempo, como se apostasse com o dia qual de nós terminaria sua jornada primeiro, e sempre perco. Todo dia estresse, cansaço, desilusão. Todo dia sonho acordada com o dia em que vou acabar com essa merda de rotina que um dia vai acabar me matando ou enlouquecendo, um ou outro, quem sabe os dois. Escrevo na minha cabeça mil e uma histórias pra justificar esse existir sem prazer, essa submissão desgraçada, essa falta de coragem pra mudar o que me incomoda, e nenhuma é boa o bastante pra me convencer de que tem alguma coisa certa na história canônica da minha vida. Eu quero é voar por aí, cansei de ficar que nem água empoçada presa sempre na mesma vidinha medíocre. Eu quero liberdade. A liberdade de sonhar quando e o quanto eu quiser, a liberdade de ir aonde meu coração mandar. Um dia, junto todas as minhas tralhas e destroços numa trouxa e parto sem rumo. Um dia, vou encontrar algum canto onde o sol me acorde sem intermediários. Um dia, vou acordar e fazer as coisas no meu ritmo, sem culpa nem desespero, e uma vez que seja vou me permitir enlouquecer só pra saber como é fazer isso de propósito. Um dia eu vou ser feliz do jeito que quero e acho que mereço, seja no fundo do poço ou no alto de um penhasco. Até lá, vou cultivando minhas rosas brancas e tentando fazer as pazes comigo mesma.

24.9.11

Dançando com as sombras nas paredes

Eu devia ter uns 12 anos. Desde cedo sofro de crises de insônia, alternadas com dias em que, se deixar, passo de 48h seguidas na cama. Essa foi uma das crises de insônia. Rolava pra lá e pra cá e não conseguia afundar no sono. Desisti de dormir e liguei o rádio. A música me embalava, me animava. Comecei a dançar sem sequer levantar da cama. O sono, já perdido havia horas, resolveu se mandar de uma vez. A aula do dia seguinte que se fodesse: até as duas horas da manhã, ouvi música atrás de música, clássico atrás de clássico. Nunca mais parei.

Esse tipo de reminiscência me pegou completamente desprevenida enquanto, do alto de meu tédio insone noite dessas, me peguei ouvindo música baixinho, fones de ouvido bem atochados em meus canais auditivos, encolhida no cantinho da cama abraçada com um dos bichos de pelúcia. Eu cantarolava pra espantar a ansiedade, meros murmúrios, mas parecia que o sono é que se afastava de mim cada vez mais e mais rápido.

Música não me ajuda a dormir. Nunca ajudou. Dormir é deixar de existir por algumas horas que sejam, o suficiente pra recuperar o ânimo pra encarar o sofrimento de trabalhar de sol a sol. Dormir é letargia, é suspensão temporária.

Música me ajuda a viver.

23.9.11

Free bird

It was summer. The damp breeze
Didn't do much to cool our spirits
The blue sky was tempting
Back itching with wings born anew

Frightened as a young bird I was
Struggling to forfeit nest and safety
The unexpected to come, the life left behind

Still the wind called
The open road urged me on
Split me open and seize the agony
Moving kept me alive

I resigned. Flung the backpack
over my shoulder and kissed
Dad goodbye.
Tears and wavings
Empty the nest, my dreams await.

I haven't gone back ever since.

18.9.11

Inícios

Eu gosto de inícios.

A primeira chuva do inverno, a primeira brisa quente do verão. Tudo que é novo me fascina, me instiga. Espírito curioso que sou, quero destrinchar tudo, desvendar os mistérios, me apropriar do inexplorado. O primeiro beijo. A primeira vez sorrateira, escondida atrás de um muro. A primeira vez que chorei.

Inícios me inspiram. Inícios me trazem esperança, a esperança de que, eventualmente, tudo vá dar certo.

Não consigo, no entanto, escrever sobre finais.

Nunca sei terminar um texto; odeio escrever poemas porque sempre me parece faltar algo no último verso. Meu sonho é um texto infinito, uma série de textos entrelaçados cujas últimas linhas sejam sempre as primeiras do próximo, um eterno ciclo... Odeio finais. Odeio ser lembrada, a cada instante, de que tudo tem prazo de validade, data hora local certos para se encerrar, tudo fenece, tudo perece. Nada nunca vai ser eterno, nem mesmo o tempo, e isso me angustia.

Queria um amor que fosse como meus textos: só inícios. A cada dia, um novo começo,  até que chegasse ao fim. E no destino inexorável de todas as coisas, que fosse como iniciar um novo ciclo.

Quem sabe assim um dia eu não consigo começar a ser feliz?

17.9.11

Cicatriz

Começou com um ato falho. De minha parte, é claro. Devo ser a rainha dos deslizes verbais, especialmente quando é, de alguma forma, importante pra mim. De qualquer forma, com um ato falho começou e eu sequer perdi o fôlego. “Você pode ou não considerar isso uma cantada, você é quem sabe”, eu disse. E todas as vezes que o vi depois fingi que nada tinha acontecido. Até o dia em que decidi que ou era, ou não era, e fodam-se as convenções sociais porque não são elas que vão encher minha barriga ou pagar minhas contas.

E foi. Não me perguntem como, mas foi. E eu gostei, ainda que as lembranças se resumam a um borrão vermelho em minhas lembranças. Borrão vermelho, sinal de que foi bom. Lembro da frustração de faltar um detalhe e isso (não) foder com tudo. E de abotoar meu sutiã e sair andando, embriagada tanto do álcool quanto do corpo que segundos antes estava contra o meu, poucos momentos antes da queda. Lembro de deixar minha marca gravada, como uma assinatura doentia, vampira que sou, em um pescoço. Lembro de sussurros ao pé do ouvido. Lembro de convites, originalmente aceitos e depois recusados. E nada mais.

Não há necessidade de perguntas. Nos meus olhos, na minha pele, sinais de como estou. Não é o frio que faz gelar minha pele. Não é a indignação que faz meus olhos faiscarem. Não é a solidão que me aflige.

São as promessas feitas. E as subentendidas.

E que esta história fique por aqui. Afinal, para bom entendedor...

16.9.11

Inverno



O inverno já tá ali na portinha, quase se despedindo, e eu aqui, passando frio por opção. Meu frio é diferente, não é desses que arrepiam a pele e deixam as extremidades dormentes; o arrepio é na alma e foi meu coração que parou de sentir. Nada tá fazendo sentido, e, por mais que eu me embrulhe no cobertor e reze pra tudo quanto é deus pra me manter aquecida, o diabo do frio não passa. Me enrosco com os bichos de pelúcia e tremo mais que não sei o quê, mas o diabo do frio continua aqui, vindo de dentro pra fora, congelando tudo por onde passa. Já tô ficando azul, roxa, sei lá, toda uma paleta de cores relacionadas a gelo. Os dias passam, e eu cada vez mais deixando de ser gente e virando pedra e torcendo pra essa merda de inverno acabar logo pra começar a derreter.

E aí chega o sol e eu sou só sorrisos. Cuidado, sol, pra não escorregar nessa poça d'água que costumava ser eu.

10.9.11

A última vez em que fiz amor


Cansei de olhar pro teto manchado de umidade, as paredes amareladas de nicotina. Procurei o que restou de minha razão em todas as marcas indistintas que me cercam, e, não tendo encontrado em nenhuma, simplesmente desisti. Gritos de violência ecoam no exíguo espaço em que me encontro, e sequer esses gritos parecem me compreender. Nunca me senti tão só. A música alta não dialoga com meus sentimentos; a solidão não mais me refugia. Cansei de exibir sempre a mesma identidade, a mesma ideologia, a mesma idiotice. Parece que nasci ao contrário, que me perdi de quem devia ser em algum ponto do caminho. Grito de volta para a música até que minha garganta arranhe, minha cabeça pareça explodir, meus ossos vibrem de agonia. Arremesso objetos pelo quarto, espalho destroços, tento me esconder na minha alma, mas a dor aqui dentro é grande demais e até mesmo meu corpo me rejeita. Não me envergonho das minhas feridas, mas gostaria que elas doessem menos. Não me orgulho de minhas cicatrizes, mas gostaria que essas marcas fossem apenas externas. Sangro por dentro, e esse sangue é negro e ácido. Tenho medo de que me envenene e corroa até que seja impossível recuperar qualquer coisa que preste. Se é que ainda há algo que preste aqui dentro de mim. As manchas de umidade e fumaça nas paredes nuas e descascadas: é isso que sou. É isso que me representa. O descaso e a constância do vício, de um vício qualquer, de todos os vícios. Me viciei demais nessa não-vida. Me entreguei demais a tudo na esperança de fugir daquilo que mais me importava. Fugi da luz, me habituei à escuridão. Não se consegue sair do buraco sem antes chegar ao fundo do poço, e eu cheguei. Agora, cá estou eu acenando e gritando, e não existe um bom coração que seja disposto a me arremessar uma corda ou sequer estender a mão pra facilitar a escalada de volta ao mundo dos vivos. Não sou decadente, pois não há mais como decair. Do ponto onde me encontro, só o inferno me parece uma rota viável. Não tenho mais forças para subir, então, para baixo é que vamos. Não há ninguém pra me pedir que eu sobreviva a isso. Ninguém que morreria por mim. Só eu. E esse é o mínimo que eu posso fazer por mim mesmo. Para me poupar de maiores apodrecimentos. Um dia, tomo coragem e acabo com tudo. Algum dia muito em breve. Talvez agora mesmo, quem sabe? A arma carregada ao lado da escrivaninha me parece propícia. Meus dedos famintos por ação; os sentimentos cuidadosamente embalados em uma caixa, prontos para o distanciamento frio que este ato corajoso exige. É só relaxar e ir dormir. Um leve fisgar, é isso. Um leve fisgar de carne dilacerada e está terminado. Sinto a carne rasgar na boca do estômago, e a dor lancinante quase me nubla os sentidos. Escorro em direção ao chão, como uma trouxa de roupa suja dobrada sobre si mesma. Eu não podia morrer de forma pacífica, precisava sofrer. Meu purgatório em vida. O sangue empapa minha camisa, nódoa vermelho escuro quase imperceptível no tecido negro, e começa a empoçar no chão. Não quero que o abraço da morte seja tão breve – quero fazer amor com ela, quero que a entrega seja completa. Dói pra caralho. Nunca nada doeu tanto assim. Enquanto a morte me enraba, a vida me abandona, emputecida pela traição. Meu último pé na bunda. O sangue já deixa um rastro até a porta do quarto. Ninguém nunca me disse que morrer era tão doloroso. Minha visão está turvada, e eu só consigo discernir o rosto da minha última amante. Ela me olha nos olhos, e não consigo amar nada do que vejo lá. É a vida, a minha vida, sendo refletida de volta pelas órbitas negras, sem julgamentos, sem piedade. A morte é minha última puta, e nem ela me oferece conforto. Sei que tomei a decisão certa quando sinto seu desprezo. Fecho os olhos uma última vez, o momento final de desespero eternamente gravado em minhas retinas. Deixo escapar um suspiro. A morte me toma pela mão, me oferece mais um cigarro e finalmente um pouco de compaixão, e partimos juntos. Meu corpo agora não passa de um mero amarfanhado de roupas e sangue embolados no chão. Antes de partir de vez, percebo um leve sorriso doentio finalmente brotando em meus lábios. Alívio, enfim. Acabou.

9.9.11

Desapego

E é um círculo sem fim. Acaba, parte pra outra, dá errado, dois passos pra trás e segue em frente. Até o  dia em que não me recuperar da queda. Até o dia  em que não me sobrar outra opção que não o vazio do desespero, de vegetar observando os buracos e imperfeições do teto me perguntando o que fiz da minha vida.

5.9.11

Das tantas coisas que não sei

Anda, me dá um cigarro. Eu preciso desabafar. Não me olha desse jeito, eu sei que falo demais, mas hoje é necessário. Eu queria, só por um dia, ser capaz de fingir. De sorrir quando quero chorar; de franzir o cenho e ostentar preocupação quando na verdade nada me abala. Como assim, eu finjo bem? O único fingimento que aprendi diz respeito a fazer de conta que sou uma estátua. Eu queria saber disfarçar, também. Por exemplo, pra olhar nos olhos sem denunciar o que vai no coração, ou desviá-los quando nada têm que fazer em determinada direção. Não faz graça. Olha que eu fujo, hein? Fica quieto e deixa eu continuar. Sabe o que mais eu queria? Saber quando ser ou quando não ser eu mesma. Quando me permitir e quando me resguardar. Eu sei, querido. Eu perco a linha fácil, não precisa jogar na minha cara. Eu precisava era, ainda que por poucas horas, ter tanto bom senso quanto se espera de mim. Ou quanto seria necessário pra me manter viva. Eu queria aprender a hora certa de calar minha boca. Como, por exemplo, agora.

27.8.11

Deixe que falem

Rasga minhas vestes ponta a ponta
Verte meu sangue sujo pelos cantos
Derrama teu veneno em ouvidos moucos
Não preciso do teu perdão

Não me importo com teu julgamento
Tuas verdades não condizem com as minhas
Tua realidade distorcida;
Teu acerto, meu erro e deus que me livre de errar

Quero o doce sofrimento da liberdade
Em vez da prisão amarga de teus cuidados vãos

Deixe de auto-enganação:
Toda essa preocupação é pra satisfazer teu ego
Nunca foi pra me proteger.

21.8.11

Cinzas

Tudo cinza. Um cinza tão profundo que não sabia pra onde olhar. Não que fizesse alguma diferença. Pra onde quer que olhe, só encontro o vazio. Não estou só, mas é como se fosse; as pessoas, vazias. O mundo, vazio. Minha própria alma, vazia. As noites sempre iguais, a rotina tirando-me a paz de espírito, os dias sem graça e a vida, mais ainda. Bocas sem rostos, mãos sem afeto, labuta em modo automático, a falta de amor, a falta de sinceridade, os problemas insossos da vida, o acordar, o existir, tudo me deprime. Não entendo o porquê, não entendo como, mas sempre acabo sabotando tudo o que dá certo e vindo parar nessa inexistência de cor, nesse meio-termo entre ofuscar-se e cegar-se no qual nada faz muito sentido.

Eu queria que, uma vez na vida, algo fizesse sentido. Queria ser capaz de acordar e saudar o sol e me sentir bem pelo que estou fazendo, mas abro meus olhos e só enxergo chumbo. Nem o sorriso dele traz cor aos meus dias cinzentos. Talvez porque ele, também, seja uma pessoa cinza, não sei. Não me importo, não quero saber. Não vou mover uma palha, porque já conheço o fim da história: o nada. Que chegará mesmo com a inação. É a inação que escolho. E assim, não agindo, vou rumo ao nada do fim dos meus dias. Cinza, muito cinza. Até que eu mesma canse, me incinere e vire cinzas.

9.8.11

O Fim

- Agora acabou de verdade.
- … E agora?
- Agora ele me botou pra fora de casa.
- Puta bosta. Eu te ofereceria de ficar lá comigo, mas tô voltando pra minha cidade amanhã.
- Sua casa tá cheia?
- Não, minha família só volta de viagem daqui a uma semana.
- Então meu problema está resolvido.
- Como assim?
- Eu vou contigo, ué.
- Mas isso não vai dar merda?
- E daí? Ele já me odeia.
- Ele nos odeia.
- Mais um bom motivo pra sumirmos das vistas dele.
- Mas você vai ficar bem? Fim de namoro é sempre uma bosta.
- Enquanto eu não ficar sozinha, eu estou bem.
- E você confia em mim pra cuidar de você?
- Sempre.
- Então, vamos juntos.
- Te amo.
- Também te amo.
- Que bom. Mas e aí, sexo no banheiro do ônibus?
- Sempre.

8.8.11

Romance político

Conheci numa passeata pelos direitos estudantis, e continuamos nos esbarrando em diversas plenárias pela zona norte afora. Cogitei a possibilidade de ir lá puxar um papo, mas já estava meio-que-comprometida com outro dos meninos do partido, então segurei a onda. Mas anotei seu nome no fundo da memória mesmo assim, para futura referência, e por isso pude cumprimentá-lo com desenvoltura quando me bati com ele no lugar onde eu costumava ir andar de skate e beber.

Ele era até bonitinho, visto assim à luz do meu círculo de amizades mais frequente, mas tinha um terrível defeito - estava aos beijos e abraços com um desafeto meu. Ou desafeta. Enfim. Era uma gracinha, mas já estava tomado e, pior, por alguém que não tinha absolutamente a menor graça. Tudo bem. Não faz diferença, ele é muito hard rock farofa pro meu gosto mesmo, quero mais é saber da galera mais headbanger. Virei as costas e continuei conversando com o cabeludinho que insistia em tentar me ensinar a jogar um card game qualquer que nem me interessava tanto assim.

Alguns dias depois, fui a um bar com minha mãe e ele estava lá. Dessa vez, nem companheiro de partido nem desafeta estavam presentes; claro que eu não ia deixar passar a chance. Nem precisei gastar muito do meu charme e em poucos minutos já estávamos nos atracando contra alguma parede da rua movimentada. O problema é que tudo estava intenso demais, provavelmente devido à alta concentração de vinho em nossos sangues, e logo se tornou necessário que encontrássemos um local um pouco mais reservado. Por sorte, eu conhecia um prédio abandonado logo ali, do ladinho de onde estávamos. E foi aí que erramos.

Mal atingimos um patamar suficientemente escuro, as mãos e as roupas e outras partes de nosso corpos teimavam em se tocar e esfregar e contorcer. Um zíper foi aberto; uma embalagem de plástico metalizado, rasgada. Deslizou para onde queria, e foi aí que, em meio aos sons de respiração entrecortada, ouvimos uma voz gritando, a plenos pulmões, "QUE PUTARIA É ESSA AQUI".

Viramo-nos lentamente e demos de cara com o cano de uma arma apontada para nossas cabeças. Aparentemente, desde a última vez que qualquer um de nós utilizou aquele local para esses fins, ali havia se tornado o point dos traficantes e usuários de qualquer droga que não fosse maconha (porque essa era amplamente consumida abertamente mesmo na rua onde estávamos). O traficante em questão esperou impacientemente que nos vestíssemos, deu na cara do pobre bonitinho com a coronha e perguntou o que tínhamos pra perder. Além de nossas dignidades e vidas, aparentemente. Timidamente, tiramos dos bolsos o que restava de camisinhas, uma carteira de cigarros amassada, um isqueiro e documentos. Não conseguíamos olhar nos olhos nem de nosso captor nem um do outro. Percebemos que ele analisou rápidamente o resumo de nossas minguadas posses antes de nos devolver tudo e mandar a gente sair dali voando. Acho que as calças foram subidas e devidamente abotoadas a meio caminho da porta.

Constrangidos, conferimos juntos nossos pertences na rua e voltamos para o bar. Cada um no seu canto. Nunca mais o vi, nem em plenárias, nem em passeatas, nem em pistas de skate. Eis aí mais uma coisa destruída pelo tráfico: o companheirismo pós-sexo.

3.8.11

Carta para Gigi, volume 2

Já desisti de esperar essa ferida fechar.

Oito anos. Uma vida. Meu filho não-nascido já saberia ler e escrever. Seu bar já seria o lugar mais badalado de Araxá. E nós ainda seríamos melhores amigas.

Esse é o oitavo ano em que não comprei rosas, não preparei um café, não fiquei em casa o dia inteiro pajeando. Oito anos sem seu sorriso torto e seu cabelo bagunçado. Oito anos sem dar pitaco na sua roupa, reclamar da minha calça de couro no seu armário, roubar seus cigarros. Oito anos sem te acordar dando feliz aniversário. Oito anos sem você.

Será que você se orgulharia das minhas escolhas? Será que escolhi o caminho certo? Tão difícil de dizer... Sem você por perto, não para me guiar, mas  para aconselhar, não dá. Estou sozinha. Estou irremediavelmente sozinha, e devo admitir que às noites me pego fingindo que é você me fazendo cafuné.

E já me faltam palavras pra dizer o quanto sinto sua falta, ou o quanto eu queria que você estivesse aqui comigo pra ajudar a fechar esse buraco no meu peito. Na ausência de tantas palavras, vou resumir tudo em duas:

Amor. Saudades.

E que a gente possa se reencontrar.

2.8.11

Álbum

A fotografia esmaecida
Inocência perdida
Momentos felizes?
Nunca mais.

Quantos desses rostos ainda sorriem?
Quantas famílias inteiras?
Quantas almas encontradas?

Bilhetes amassados
Cartões manchados
Uma rosa seca.

Amareladas as lembranças
Decaídos os alicerces
Feche a tampa da memória:
Os dias se acabaram.

1.8.11

Duas verdades

Gostava dele como amigo. Beijaram-se, fizeram piadas a respeito, despediram-se com um selinho na porta de casa. A vida continua, a amizade continua, nada mudou.

Gostava dele como amante. Sentaram-se juntos, beberam, conversaram a noite toda. Na hora de ir embora, abraços. A vida continua, mas algo mudou. Apaixonou-se.

28.7.11

Eu chamo a polícia!

Era um sábado como outro qualquer. Na época, eu trabalhava em Itapuã, e, apesar de morar pela região, geralmente saía do trabalho e ia pra Liberdade, independente da hora que fosse. Pra quem não está muito familiarizado com a geografia de Salvador, basta dizer que eu levava umas duas horas pra chegar lá se o segundo ônibus não demorasse muito. Mas enfim.

Era sábado, por volta de meio-dia, e eu estava dentro de um Estação Pirajá que sacolejava mais que carroça puxada por jumento. Fazia um calor infernal, o trânsito estava infernal, e eu tenho certeza de que já fazia mais de 15 minutos que eu estava sentada naquele ônibus e minha casa, a 15 minutos de caminhada do trabalho, ainda não estava nem perto. O ônibus, para melhorar, estava entupido de todo tipo de gente: ratos de praia fedendo a sargasso, vendedores de toda sorte de quinquilharia, patricinhas e gente saindo do trabalho. De alguma forma, consegui sentar na janela, coloquei meus fones de ouvido e me concentrei em ignorar o mundo.

Um daqueles vendedores de algum abrigo para pessoas dependentes de narcóticos entrou no ônibus, vestido de palhaço e mais implorando do que de fato tentando vender alguma coisa. Como sempre acontece, foi solenemente ignorado pela grande maioria, inclusive por mim, que estava, para completar, com o mau humor da vida toda. De repente, sem maiores avisos prévios, uma mulher que estava sentada na frente do ônibus levanta, dá algumas moedas pro rapaz e começa a xingar todo mundo.

Não é aquela xingadela resmungada por baixo da respiração, estilo "cambada de filho da puta casquinha" nem nada do tipo. Foi uma xingada de respeito. Levantou do banco em que estava sentada, encheu os pulmões e começou a apontar o dedo na cara de todo mundo.

- Vocês são todos uns falsos cristãos! Ficam aí defendendo o amor ao próximo, mas ninguém tem um trocadinho pra dar pra ajudar os outros! Pois eu DUVIDO que ninguém tenha dinheiro pra doar aí! Todo mundo usando calça de mil reais e blusa de quatrocentos...

Nessa hora eu já comecei a engasgar de rir. Olhei pras minhas calças - presente de uma tia, não deviam ter custado nem trinta reais - e a blusa do uniforme do trabalho, e me perguntei de onde que ela tinha tirado que era todo mundo rico. Garanto que se eu fosse rica não estava naquele ônibus. Mas ela não parou por aí.

- Todo mundo com cara de rico e ninguém quer ajudar ninguém! E eu aqui, ganhando minha vida vendendo coentro numa barraquinha em Peri Peri, não me envergonho de fazer o que posso pra ajudar! Vocês são todos uns hipócritas!

A essa altura metade do ônibus já estava cochichando, comentando com quem estivesse próximo a atitude da velha. Um mais gaiato berrou, "cala a boca, velha maluca!" antes de descer do ônibus. Foi o que bastou pra ela se inflamar. Levantou do banco, veio mais pro fundoe parou exatamente do meu lado.

- Cadê? Cadê esse covarde que me mandou calar a boca? Fala na minha cara, filho da puta, que eu te encho de porrada! Cadê? Na minha frente não tem coragem não, é?

- Ele já desceu, senhora!

- Desceu? Filho da puta! Para esse ônibus, motorista, para que eu quero ir na delegacia prestar queixa. Tá pensando o quê? Eu não tenho pena quando mauricinho amanhece com a boca de formiga na beira do morro não! Traficante não mata por nada não! Se tá morto, é porque fez alguma coisa que não devia. Quando a galera lá da minha área tem problema, eles vão é pedir ajuda pros traficantes. Eu não. Eu nem me abalo não. Eu chamo é a poliííííííííííííciaaaaaaa!

Eu quase me dobrava de rir do jeito que ela berrava "polícia".

- Olha, e vocês tão pensando o que? Eu não sou crente não! Minha religião é a CACHAÇA! Mas meu único pecado é gostar do marido das outras. Motorista, para esse ônibus que eu vou descer é aqui mesmo. Cambada de filho da puta hipócrita.

Desceu do ônibus. Subitamente, tudo ficou chato. Enfiei os fones de novo nos ouvidos e aproveitei o restante das horas de viagem.

27.7.11

Saias

Daí que até recentemente eu não sabia que existia uma coisa chamada "saia masculina".

Fiquei aqui pensando com os botões do casaco que não uso, como raios será que funciona um negócio desses? Qual a diferença de uma saia masculina pra uma saia feminina? Será que é mais larga? Será que é mais fechada, sei lá? Fui perguntar pro deus Google, então, e ele me vem com isso:



Pois é. Sacaram a diferença pras saias femininas? Sério? Porque eu não.

Juro pra vocês que, nas minhas fases mais gotiquetes, eu só usava saias assim. E não entendo porque, da noite pro dia, começou essa papagaiada de definir gênero pra saias.

Cabe aqui deixar bem claro que não tenho problema nenhum com homem usando saia. Acho até bonitinho, e imagino que deva ser bem mais confortável. Até porque não posso ser hipócrita, conhecida como sou por usar calças masculinas sem dó nem piedade pelas ruas afora. Meu problema é com a definição de gênero das peças de roupa.

Há aqueles que dizem que a invenção da saia masculina (oi, invenção? Tão aí os escoceses a trocentos milênios pra clamar a honraria) é um marco na liberdade de expressão de gênero. Meu ovo esquerdo imaginário. Liberdade de expressão de gênero no vestuário, no meu entender, implicaria na não distinção de gêneros para peças específicas.

Hoje em dia, vê-se mulher usando de tudo na rua sem maiores estranhamentos. Há anos conquistamos as calças; hoje em dia, suspensórios e gravatas não são de todo incomuns, e até houve a moda da tal da "calça boyfriend". No entanto, para que os homens conquistassem o direito de usar saias sem precisar ir morar nas ilhas britânicas foi necessária a adição do adjetivo "masculino" após o nome da peça de roupa. Se não for uma saia masculina, o cidadão que tá usando só pode ser viado. Né?

Cai no mesmo clichê da homossexualidade. Por algum motivo, homossexualidade feminina é bem mais bem aceita que a masculina. Pergunte ao seu pai. Pergunte ao seu amigo. Pergunte ao seu namorado. Você, mulher bem resolvida, pergunte ao seu pai careta e conservador se ele encararia mais na boa você gostar de mulher ou seu irmão gostar de homem. Sugira ao seu namorado que você encare uma bi-curiosity só pra fazer charminho pra ele e, depois que ele se animar, diga que só faz se ele também o fizer. Duas mulheres se pegando faz parte do imaginário sexual masculino. Já dois homens se pegando... bom, acho que existem motivos de sobra pra crer que não é uma prática tão tranquila assim.

O mundo é machista. Nem venham me chamar de femista radical nos comentários, vocês sabem que é verdade. E só isso explica a necessidade de definir e rotular gêneros em peças de roupas.

Deixo aqui registrado meu protesto e o início da campanha: PELO DIREITO DE HOMEM USAR MINISSAIA DE VINIL ROSA-CHOQUE SE ASSIM DESEJAR. Porque viadagem é ficar se escondendo atrás de nomenclatura imbecil pra assegurar masculinidade, ora porra.

26.7.11

Ventilador

Era um daqueles dias em que tudo parece conspirar contra mim. Fiquei uma hora e vinte a mais do que devia no trabalho, briguei com a chefe, o ônibus mudou de rota e me deixou lá no inferno, longe demais de casa pra andar sem derreter de tanto suar e perto demais pra pegar outro ônibus. A época do ano e a conjunção astral não colaboravam. Salário atrasado, carnaval - o inferno na terra - e, o pior: a perspectiva de passar um feriadão inteiro com exatos quinze reais no bolso, faltando comida em casa e o cigarro no final. Ilhada, entre três focos de folia desregrada, e sem poder fugir para nenhum lugar que se assemelhasse, ainda que remotamente, a um oasis de tranquilidade.

Claro que ia dar merda. Em algum lugar, um demônio olhou para mim e soltou uma risada maquiavélica.

Eu não podia fugir da minha ilha cercada de pagode por todos os lados porque, como não poderia deixar ser em se tratando de minha pessoa, a encomenda que fiz há quase um mês estava programada para chegar no meio das festas. Briguei com a chefe justamente por isso - não podia ir trabalhar na sexta, que já era minha folga mesmo, porque tinha que esperar a porcaria do pacote chegar. E era quinta.

Mal tinha terminado de almoçar os vestígios do almoço do dia anterior, a campainha toca. Com alguma dificuldade, levantei para abrir a porta e dei de cara com o zelador, com seu sorriso torto - aliás, o rosto todo dele é torto; lembra um pouco uma pintura cubista -, avisando que "vieram entregar uns pacotes pra você, tão lá na funerária, sobe lá pra buscar". 

Cabe aqui explicar que moro num prédio pegado a uma funerária. Na verdade, a funerária fica no prédio, e funciona como uma espécie de portaria mórbida 24 horas guarnecida por caixões de todos os modelos, cores e tamanhos. Então, é seguro e bastante realista dizer que moro no subsolo de uma funerária. Pois é, minha vida é uma piada de humor negro.

Subi os 5 lances de escada até a funerária e vejo uma caixa enorme e uma tábua de passar roupa me esperando. E nenhuma ajuda pra carregar os dois trambolhos escada abaixo. Ouvi a risada demoníaca de novo e lá fui eu, caixa de papelão nos braços, tábua de passar roupa em cima, descendo. No primeiro tropeção já senti vontade de arremessar tudo escada abaixo e descer pelo corrimão, mas lembrei que havia eletrodomésticos dentro da caixa. Entre quebrar as coisas pelas quais eu havia passado um mês esperando por pura preguiça e subir e descer aquelas malditas escadas algumas vezes, preferi a segunda opção.

Algumas horas de exercício aeróbico depois, sentei no chão do quarto e conferi a mercadoria. Ferro de passar, ok. Tábua, ok. Ventilador torre, ok. Mesa do computador... bom, definitivamente não caberia dentro daquela caixa. Decidi me preocupar com isso mais tarde, e montar o bendito ventilador, porque verão na Bahia sem um ventilador para chamar de meu é masoquismo demais até pra mim, que já fui gótica. Aliás, desisti de ser gótica justamente porque ser gótico no Nordeste é que nem ser nudista no Alasca: simplesmente não dá. Suor derrete maquiagem, afinal.

Enfim, peças desencaixotadas, kit de ferramentas por perto, telefone pro caso de eu acidentalmente perfurar meu baço com um parafuso, hora de por as mãos na massa. Percebi vagamente que os pedaços de ferro nos quais eu tinha que encaixar os pézinhos do ventilador pareciam ser mais estreitos do que deviam, mas imaginei que não fosse ser tão difícil assim. É óbvio que eu estava enganada. Empurrei, chutei, tentei arregaçar o ferro e prender com um livro bem grosso, tudo em vão. Aquela merda era estreita, ia continuar sendo estreita e, se eu queria enfiar alguma coisa mais espessa ali, teria que ser com muito cuspe e jeito. Bufando de raiva e pelo esforço, larguei aquilo de lado e fui trabalhar em outra peça.

Olhando o manual de instruções, vi que precisava desrosquear uma pecinha que regulava a altura da torre, pra poder encaixar o motor na haste. "Essa vai ser mais fácil", pensei. Girei pro lado um pouco, e a peça soltou um pouco. Tentei girar mais e nada. Tentei girar pro outro lado, também não ia. Peguei com a blusa, só consegui rasgar. Pra minha sorte, era uma camiseta promocional da Piraquê de mil novecentos e bolinha que eu só usava mesmo pra fazer faxina. Tentei com uma toalhinha - lembrança de casamento de alguém - e nada. Meia hora de esforço depois, vi que estava tentando girar o troço pro lado errado. Só podia. Tentei de novo com a toalha.

Desisti. Quase chorando, ameacei rumar a peça longe. Só não o fiz porque ou quebraria o computador da colega de quarto ou o meu armário. E então lembrei da máxima feminina: os homens só conseguem abrir potes tão fácil porque a gente afrouxa antes pra eles. Se tentássemos mais um pouco, conseguiríamos. Peguei aquela porcaria de volta, e dessa vez consegui, provando assim a teoria. Encaixei o cano de metal no motor, prendi e... descobri que teria que soltar de novo. Afinal, precisava aparafusar a haste na base - que eu havia deixado de lado - antes de prender o motor. Uma coisa óbvia, mas que nem passou pela minha cabeça.

Soltei a porra do motor e voltei a trabalhar na bendita base. Depois de cortar os dedos enfiando os pézinhos, chegou a hora de aparafusar. Mas quem disse que os parafusos entravam? Se eu conseguia prender três, o quarto ficava torto. Tentei de todos os jeitos possíveis, mas nada fazia aquele enviado minúsculo do próprio Satanás encaixar no lugar em que devia. Bom, é sabido que não sou muito fã dessa história de encaixar coisas em buracos, ainda mais tão apertados, mas ainda assim, tenho um bom embasamento prático e teórico na coisa, não deveria ser problema. Se até os pés da base consegui encaixar...

Mas não. Não era pra ser. Em desespero, comecei a chorar. Olhava para o ventilador e não via um equipamento necessário para a sobrevivência. Via um adversário, um antagonista. Uma inimizade mortal surgiu naquele momento. Olhei para ele e gritei, "POR QUE VOCÊ ME ODEIA TANTO ASSIM, SEU VENTILADOR DE MERDA?!" Eu queria dar uma de Narcisa e jogar aquela bosta pela janela, eu queria chutar aquelas pecinhas de metal como se fossem uma carcaça de cachorro morto, eu queria ligar pra algum amigo homem e pedir socorro, abrindo mão de décadas e mais décadas de luta feminista. Aquela máquina estava querendo me rebaixar e eu, do alto de minha TPM, não aguentava mais. Mas me lembrei que sou uma mulher independente e autossuficiente e, se mato baratas e outros insetos repugnantes sozinha, não é um mero pedaço de sucata que vai me derrubar. Enfiei o parafuso no tapa, rosqueei de qualquer jeito e lancei um urro de vitória.

Agora faltava pouco, e eu já sabia os procedimentos. Terminei de encaixar e aparafusar tudo, e o vento que o bichinho faz até que compensa o esforço. Liguei pra casa, pra avisar meu pai da falta da mesa do computador, e me preparei para sair da minha ilha subterrânea. Malas quase arrumadas, minha madrasta liga de volta:

- Olha, a mesa só chega aí depois do dia 20, e você que vai ter que montar. Mas a sua cama tá indo, viu? Deve chegar aí essa semana. Fique em casa para receber.

Arremessei o celular na parede. A funerária que se entendesse com minha cama. Apanhei minhas coisas e fui embora.

25.7.11

Platão, reloaded

Já perdi as contas de quantas vezes te reinventei na minha cabeça. Nos meus sonhos, a cada dia você era um pouquinho mais criação minha, até que um dia não te reconheci mais. Você desapareceu, e em bem pouco tempo a você que eu criei também parou de aparecer. Perdeu a forma, a cor e a graça. Ainda sinto aquela pontada de tristeza por tudo o que vivemos na minha imaginação e que nunca será. Ainda lembro dos detalhes das linhas de suas mãos e do som do seu sorriso. E é só isso que tenho agora, lembranças. Você sumiu de todos os meus mundos, e nem posso te culpar. Você nunca soube o quão minha era.

24.7.11

Cansei

Um dia eu acordei e cansei de viver na minha pele. Não sei; foi daquelas cismas que vêm sem quê nem porquê e abalam a gente. Eu queria ser outra pessoa. Cansei de olhar no espelho e ver os mesmos olhos cansados de sempre refletindo esverdeados a mesma eu que sempre fui. Cansei de buscar na minha consciência e encontrar os mesmos erros cometidos toda santa vez, e os mesmos parcos acertos sem honra nem razão de ser outra que não a mera sorte. Cansei de minhas idéias, cansei de meus desesperos, cansei de lutas vãs e noites vazias. Cansei de me apegar nesse desapego de mim mesma. Cansei de não me apegar por tempo o suficiente pra que mude alguma coisa na minha vida. Cansei de madrugadas perdidas, da mente embotada, da eterna procura por algo que nunca vou encontrar por sequer saber o que é. Cansei da minha vida. Cansei de mim. Posto isso, pego o papel em que rascunhei minha história, amasso e jogo na lareira. É hora de recomeçar.

22.7.11

This is an apologize.

Eu queria não pensar tanto. Eu queria não romantizar tanto as coisas, nem me iludir tanto. Mas é difícil, difícil pra caramba. As palavras escapam levianas por meus dedos, e nem sempre sou capaz de prever todas as consequências. Nem sempre me dou ao trabalho de tentar, também. E é aí que as coisas degringolam. Porque eu não meço palavras mais do que meço sentimentos, e, infelizmente, mudo de idéia como mudo as cores das unhas. Ontem, me sentia segura; hoje, me sinto presa; amanhã, possivelmente, sufocada e moribunda. E me esqueço de que as pessoas não estão dentro de mim pra acompanhar a velocidade dessas transições ou entender como foi que isso aconteceu.

Aliás, eu mesma não entendo.

Você me estabilizou. Vi em você muito do que me faltava, e, por cerca de duas ou três semanas, estive em paz. Comigo mesma, com o mundo, com a vida. Ou, pelo menos, achei que estava. Por fora, ao menos, estava. Por dentro, tudo estava em ebulição, só esperando o pior momento possível para explodir. A menor brecha que fosse. E essa brecha apareceu.

Pelo menos não foi tão tarde que o dano não possa ser reversível.

Não espero que você perdoe minhas falhas nem meus pecados. São meus, e errei mais ainda em permitir que você se envolvesse neles. Isto é um pedido de desculpas por ter deixado você entrar tão fundo na minha vida, antes que tivesse tempo de visualizar o gelo das águas no fundo desse poço de contradições.

Mesmo que eu tenha avisado desde o início como isso ia terminar.