25.9.10

Inflamável

Eu queimo. Queimo, derreto e evaporo. Não nasci pra ser um item imutável – sou cometa, sou raio, sou fenômeno natural, tão destrutivo quanto possível. Me exponho até o cerne, mas não me exponho – criei um personagem do qual não consigo me livrar, nunca. Às vezes acho que esse personagem assumiu de vez o controle sobre minhas ações. Faz tempo que deixei a adolescência, mas ainda assim, não consigo responder direito à pergunta: quem sou eu, de verdade? Dianna Montenegro não é quem eu sou. Não é quem eu quero ser. Mas ela já criou vida própria. É ela quem senta na faculdade e faz piadas sobre os professores. É ela quem passa o expediente inteiro no trabalho baixando filmes e seriados e falando pro mundo. É ela quem assume nas noites perdidas no Rio Vermelho. Mas ela é só um lado de mim.

23.9.10

Líquida

Você já tentou represar uma quantidade grande de água em um espaço muito pequeno? É impossível. A água é resoluta, recusa-se a ficar em claustro - transborda. Água boa é água em movimento; água que não se move, estagna. A água não destrói o que tenta lhe alcançar, como o fogo; a água não finca raízes, como a terra; a água tem delírios de ar, mas tem uma maleabilidade que ao ar não cabe.

Pois bem; está mais do que na hora deste rio aqui seguir seu curso, antes que vire pântano, apodreça e deixe de ser para existir.

21.9.10

Auto-biografia I

Gerada num dia fora do tempo, numa noite de lua negra, numa casa condenada, caindo aos pedaços, ocupada por dois perfeitos desconhecidos determinados a me trazer ao mundo. Criada num lar desfeito, por uma mãe desequilibrada e um pai que se esforçava tanto que acabava por nunca estar. Desde cedo, o álcool como tutor. Indesejada pela maioria, adotada pelos demais. Órfã aos 17, toda uma bagagem de erros nas costas, uma estrada de nuvens cor-de-chumbo à frente. Prometi: só volto vitoriosa, ou em um caixão. Ainda não chegou a hora de decidir qual dos dois.

20.9.10

Amor de Recreio*

A sua pele é neve; a minha incandesce.
As mãos espalmam-se, e do toque sai vapor.
Ronrono, suave;
Você sorri e expira.

Sob as árvores e o sol do fim da tarde
Me perco, e o momento passou.

Um abraço, um até logo
E várias promessas não feitas.
Sorrio de volta.
Amanhã, nada vai mudar.

Sabe? No final, talvez eu prefira assim.





* Título-piada-interna. Do tipo que só quem segue a mim ou a @ana_flaming no twitter vai entender.

16.9.10

Ninho antigo

Adoro a cidade em que moro, mas não aguento mais morar nela. Salvador é suja - em todos os sentidos que você for capaz de aplicar a palavra "suja" - e desorganizada. As pessoas - prestem atenção, estou fazendo uma generalização, não apontando dedo na cara de ninguém - são mal educadas. O clima é quente, abafado, úmido demais. Sinto como se estivesse sempre molhada - quando não é a chuva, é o meu suor. A cidade é muito bonita, mas olhando ao redor, percebe-se que está praticamente abandonada às moscas.

Adoro meu trabalho e as pessoas que trabalham comigo. Mas, de uns tempos pra cá, aquele sorriso nos lábios que brotava espontaneamente ao pensar em ir pra lá tem sido mais e mais raro. Me sinto exausta só de pensar na distância que preciso atravessar pra chegar ao trabalho. Me dá agonia pensar nas duas horas de ônibus de todo dia pra ir de casa pro trabalho, do trabalho pra casa. Olho a lista dos alunos do dia e suspiro fundo, lamentando-me porque sei que esse aluno não vem, esse vai chegar meia hora atrasado e querer que eu faça milagre e aquele terceiro até que é tranquilo, mas vou precisar do diário de classe do professor dele, que não atualiza os dados desde a última era glacial e não está na escola hoje. O café vai estar sem açúcar, aguado, frio ou todas as três opções simultaneamente; toda vez que eu tentar escapar pra fumar um cigarro, alguém vai surgir com alguma nova obrigação.

Sou apaixonada pelo meu curso na faculdade. Na verdade, acho que a única parte do dia em que realmente sorrio com vontade é a manhã. Sei que vou aprender/rever coisas que me interessam. Sei que estarei junto com pessoas que me são muito queridas. Sei que darei boas risadas. Mas também sei que isso quer dizer acordar mais cedo do que meu organismo, movido a café-cigarro-álcool, gostaria. Quer dizer subir e descer um monte de escadas e ladeiras, sujar a barra da calça de lama, almoçar correndo. Quer dizer encarar aquele professor chato que faz a matéria mais interessante parecer pura boçalidade.

Sair com os amigos, coisa que deveria ser um motivo de alívio no meio de tanto desânimo, parece mais um sacrifício. Me arrumo. Calço sapatos de salto, visto uma minissaia, uma blusa decotada e... bate aquele mau pressentimento, invariavelmente correto. Não me dá mais prazer. Não vejo mais graça em sair, encher a cara como se não houvesse amanhã, beijar uns 3 garotos, 2 garotas e um poste e chegar em casa de manhã. Especialmente porque nunca me lembro de ter feito nada disso.

Sinto vontade de procurar um terapeuta às vezes, mas duvido muito que possa me ajudar. Acho que meu problema se resume em uma palavra: tédio. Estou há tempo demais na mesma cidade. No mesmo emprego. Na mesma rotina. Preciso de mudança. Preciso ir embora. Mesmo que seja pro Acre.

Desconhecimento

Não tinha o direito de tocá-la, mas também era difícil manter-me distante. Deitadas lado-a-lado, repousei minha cabeça no seu ombro e a abracei. Ela estremeceu. Um casal de amigos dela, sendo um colega meu de faculdade e o outro primo de um amigo meu, deu risada de nossa intimidade recém-criada. Me aninhei mais, feliz como há muito tempo não me sentia. "Você sabe que eu sou hetero", ela me disse com ar de reprovação. "Você sabe que eu não me importo", respondi meio divertida pelos protestos. Ela me puxou pra perto. Olhei nos seus olhos e tenho certeza de que a confusão em meu semblante estava mais que nítida: eu não fazia absolutamente a menor idéia de quem era ela.

14.9.10

Rapidinha 2

Era bem tarde quando abriu a porta. Exatamente quase tarde demais, nem um minuto a menos, a porta escancarou-se e deixou toda aquela torrente de assuntos mal resolvidos e mal enterrados invadir. Um vendaval entrou junto com a poeira de lembranças e carinhos há muito guardados, bagunçou todo o tênue equilíbrio que reinava e me soterrou debaixo de uma pilha de sentimentos que, a essa altura, já rescendiam a mofo e coisa velha. Para onde quer que eu olhasse, só aquele mar de coisas que tentei esconder a todo custo, que neguei até não ter mais forças pra negar. Agora, estou cansada demais pra lutar contra essa maré que teima em me arrastar, e deixo que essas ondas me levem até onde quiserem.

9.9.10

Paraíso Perdido

Coloca pasta de dentes sabor tutti-frutti na escova roxa. Cuidadosamente, escova todos os dentes, pra em seguida bochechar com um enxaguatório bucal sem álcool. Escova umas 100 vezes o cabelo em-fase-de-crescimento e prende numa trança. Veste o pijama rosa que ganhou no último aniversário e vai preparar a cama, forrada de lençóis rosa, lilases e roxos, para receber seu corpo meio rechonchudo. Afofa o travesseiro e coloca a capivara e o elefante de pelúcia debaixo das cobertas também. Faz uma breve oração, desejando o bem-estar de todos aqueles que ama. Dá boa noite com voz de criança - aquela voz de criança usada só pras pessoas realmente legais - e senta na beira da cama pra descalçar as pantufas de tigrinho. Estica-se pro computador, convenientemente estacionado do lado da cama, e monta uma lista de músicas pra embalar seu sono. Depois de acrescentar Nine Inch Nails, Dir en Grey, Rammstein e Kidneythieves na lista, finalmente deita, vira pro lado e dorme, agarrada com seus bichinhos, alheia a todo o resto.

8.9.10

Despedidas

Meu quarto nunca foi lá muito organizado, mas dessa vez estava um pouco demais. Ele estava sentado em cima da minha escrivaninha, aquele elemento a mais de caos na minha vida já completamente caótica por definição. Aquele elemento de caos que me deixou rindo feito uma idiota quando brotou de surpresa na minha cidade pra uma visita. Por isso não deu pra arrumar tudo em preparação; ele chegou do nada, sem avisar.

Então, ele estava sentado na escrivaninha, e eu sabia que não faltava muito tempo para ele ter que ir embora. A proximidade do momento da separação me deixava meio apreensiva, mas não demais, já que eu sabia que em breve seria minha vez de cruzar o pais para vê-lo. Estávamos em silêncio, eu perdida na minha apreensão e ele, bom, sei lá no que ele pensava. Serj Tankian gritava alguma coisa nas caixas de som, mas eu estava distraída demais pra prestar atenção.

De repente, o telefone dele tocou. Por questão de educação, decidi que era um bom momento para dar o fora daquela zona. Virei minhas costas e fui até a cozinha pegar alguma coisa pra beliscar. Quando voltei pro quarto, ele já não estava mais lá. Nem a porção dele da bagunça, uma mala displicentemente arremessada num canto. Estranhei. Sensação meio esquisita na boca do estômago. Corri até a sala e dei de cara com minha colega de quarto.

- Viu o Fê?
- Saiu ainda agora, te deixou um beijo, disse que arrumou uma carona pro aeroporto e não ia dar pra esperar você voltar.
- Oi?

Fui até a janela. Nem sinal. Aparentemente, a carona já ligou da porta aqui de casa. Me emputeci bastante, sabe? Não é normal uma pessoa vir de tão longe pra visitar alguém e ir embora assim, do nada, sem nem dizer tchau. Calcei meus tênis meio correndo, peguei um guarda-chuva - chovia a cântaros, como costuma acontecer durante a metade do ano em que Salvador não é insuportavelmente quente - e pulei dentro do primeiro Lapa-Itinga via Aeroporto que passou.

Devo ter cochilado dentro do ônibus, sei lá, mas nunca o trajeto Federação-Aeroporto foi tão curto. Corri como se minha vida dependesse disso até o portão de embarque, e consegui chegar lá antes dele. Estava pronta pra xingar. Pra reclamar que era muita falta de consideração. Pra não falar nada, simplesmente olhar pra cara dele com aquele olhar-de-fúria-gélida que eu só consigo fazer quando estou extremamente puta da vida, virar as costas e ir embora. Eu só não estava pronta pra cara que ele fez quando me viu. A raiva pareceu evaporar e sair em nuvenzinhas de fumaça vermelha pelos meus poros, tipo um nitrous purge, enquanto eu me aproximava lentamente, um pouquinho constrangida por ter chegado ali tão rápido e tão nitidamente em pé-de-guerra.

Ele abaixou os olhos quando cheguei perto. Me pareceu distinguir um leve tom de vermelho em seu rosto. Desviei os olhos, subitamente consciente do peso da situação. Nunca fomos namorados, mas o ar, pra mim, tinha cheiro, cor e gosto de pé na bunda. Ele quis ser o primeiro a falar.

- Pois é... eu tenho um problema, não sei se você lembra, mas eu...
- ...detesta despedidas. - completei por ele porque só agora me lembrei desse detalhe - Eu também. Mas ia ser uma puta sacanagem você ir embora assim sem me dar a chance de um último beijo.
- Não ia ser o último. Você vai me visitar logo, né?
- É. Mas eu queria algo pra ficar na memória.
- Engraçado como eu sempre me sinto triste quando a gente se separa.
- Engraçado? Eu acho normal. E adorável.
- Você gosta de ficar triste. - Não era uma pergunta.
- Não. Eu gosto de ter um motivo pra ficarmos tristes quando um de nós dois vai embora, é diferente.
- Xaxim Guaxinim...
- Hm?
- Vamos mais pra longe do portão de embarque um pouquinho? Não quero me despedir de você aqui. Fica com cara de pra sempre.
- Tá. Mas se você chorar, eu choro.

Demos as mãos e viramos as costas. Eu já sabia que nunca iria ser pra sempre.