19.2.19

Profissional

O pastel de queijo com suco de acerola já não passava de uma vaga lembrança e eu ainda tinha quarenta minutos pra matar antes de ir para o trabalho, então sentei no murinho baixo do lado de fora do Sumaré e acendi um cigarro. Quando chego mais cedo, gosto de sentar naquele murinho e observar as pessoas - a essa hora da tarde, ninguém passa por ali sem uma missão específica, e tudo é tão agitado e ao mesmo tempo tão firmemente plantado na rotina que chega ser tranquilizador. É quase como se eu fosse invisível...

...exceto que, desta vez, eu não estava invisível. Nem percebi direito quando ele chegou, absorta que estava em observar o ir e vir alheio. De uniforme de trabalho com logotipo de alguma empresa que não reconheci, a camisa verde aberta até o penúltimo botão, um chapeuzinho preto na cabeça, a pele bem escura manchada aqui e ali pelo sol e a roupa coberta de uma mistura de poeira, cimento e manchas velhas de tinta. Só percebi que estava ali quando ouvi o barulho de seus pertences sendo arremessados no canteiro à minha esquerda. Não precisei olhar duas vezes para perceber que o rapaz tinha bebido mais até aquele momento do que eu nas férias inteiras.

Quando ele percebeu que tinha sido percebido, murmurou algo. Achei que fosse "cigarro", e, sem saber se era uma reclamação, uma tentativa de me dar conselhos ou um pedido, desviei os olhos. De canto de olho, no entanto, ainda consegui reparar quando ele começou a mexer na pilha de pertences, parecendo procurar algo.

- Ei, moça!

Olhei para ele por cima dos óculos.

- !#$#$$¨%¨@$#!#$@!@#você quer?

- Perdão, não entendi.

- Eu achei um pacote de hális aqui, você quer?

- Hein? Não, desculpa, estou de boa, mas obrigada.

- Pega aí, ninha.

- Não, valeu mesmo.

- Pegaí que é pra eu não ficar nervoso.

- ... tá certo. Já que é assim, obrigada. Quer um cigarro em troca?

Mais ou menos nessa hora que um segurança do shopping parou mais perto de nós e ficou ali, olhando discretamente na nossa direção.

- Em troca, não. Mas se você quiser me dar um cigarro só porque é legal, eu aceito.

Peguei o maço na mochila e estendi um cigarro para ele, que ele prontamente encaixou atrás da orelha. Guardei a bala no bolso.

- Você é muito simpática.

- Muito obrigada.

- Não, sério mesmo. Você é gente boa. Um ser humano decente. Coisa rara hoje em dia. Eu tô bem bêbado...

- ...é, eu percebi.

- ...mas olha, eu sou profissional. Digo, não bêbado profissional. Eu tenho uma profissão.

- É bêbado só por esporte, então?

- Aí sim, você sabe das coisas! Mas eu trabalho com construção.

- Por isso o uniforme sujo de cimento?

- É, eu tô todo sujo, que merda, desculpa moça, é chato eu estar todo sujo, mas aí o serviço acabou cedo e eu fui beber. Minha mãe... - e escondeu o rosto nas mãos e virou para o outro lado.

- Desculpa, você está bem? Aconteceu algo com sua mãe?

- Não, ela tá bem, é só que só de pensar no que ela ia dizer se me visse assim eu fico com vontade de chorar. Qual seu nome?

- Dianna.

- O meu é... é... olha, pode me chamar de Lino, tá? Tipo: Liiiiiinoooooo. Parece lindo, mas é Lino. Lindo é seu nome. Dianna. Você tem mãe?

- Ela é falecida há alguns anos.

- Ai, que triste. Meu pai também. Mas é recente. 

- Bom, sinto muito.

- Você é casada?

- Sou. - Nessa hora, caiu a ficha de que eu estava virtualmente sozinha, conversando com um desconhecido muito bêbado no meio da rua. Não passava pensamento com azeite.

- Você é legal. Não queria perder o contato. Você mora onde?

- ... - cuspi o primeiro nome de bairro que não fosse o meu que me veio à cabeça.

- Ah... legal, legal. Você é legal. A gente pode se ver num dia em que eu esteja mais sóbrio?

- Não sei se meu marido ia gostar.

- Ahhhhh. Hahaha. É verdade. Você é direita mesmo, gosto de você. Até queria dizer que... Ai, mas eu fico com vergonha.

- É, bom, eu preciso ir trabalhar.

- Negona... desculpa, negona é forma de dizer, tá? É carinhoso.

- Eu sei, relaxe.

- Eu preciso te confessar um negócio. É sério.

- ... diga aí.

- Eu nunca peguei uma mulher... assim, uma mulher bonita.

Não consegui conter uma gargalhada.

- É sério! Eu juro! Só peguei mulher feia a vida toda!

- Olha... Lino, né? Foi um prazer te conhecer, mas deu minha hora de verdade. - Estendi a mão para o rapaz. Achei que era o mínimo que eu devia pela gargalhada. 

Ele não fez nem sinal de retribuir o aperto de mão. Me olhou desconfiado, como se algo não estivesse certo.

- Não vai apertar minha mão não, rapaz?

- Mas você já vai?

- Já, tenho horário, eu falei. Vai pra casa, bicho. Cê tem mãe, ela deve estar preocupada.

Ele continuou me olhando como se um terceiro braço tivesse saído do meu pescoço. Joguei a mochila nas costas e fui pro trabalho, agora realmente na minha hora. Lino ficou lá. A bala ainda está no meu bolso. Espero que tenha chegado vivo em casa.

Silêncio

Eu não queria que você parasse de falar nunca.
É estranho, né?
Eu nunca soube bem como definir isso,
mas acho que gosto mais de ideias do que de pessoas.

E você falava bem sobre suas ideias,
e eu não queria que você parasse de falar,
porque quanto mais você falava,
mais eu me apaixonava pela ideia de você.

(Acho que acabei me apaixonando
pela imagem de você que eu criei
com base no que você escolheu me mostrar
e o resto eu fui preenchendo
com minhas próprias expectativas.)

Mas tudo que é incrível
um dia tem que acabar,
e você parou de falar,
e eu fiquei sem saber o que fazer
com tanto pathos
querendo escapar desarrazoadamente pela minha boca,
e eu não queria te assustar
com a tormenta que se formava dentro de mim,
então eu te beijei
pra tentar amenizar a intensidade
do que eu estava sentindo.

Eu não queria que você parasse de me beijar nunca.
É estranho, né?
Parece que seus lábios falam a minha língua
de todas as formas possíveis.

E o que era intenso transbordou,
e eu não podia suportar mais a ideia
de terminar a noite
sem sentir o calor da sua pele.

(Doía pensar que depois daquela noite
eu iria embora
e talvez eu nunca mais te visse
e talvez morresse sem saber
se seu corpo era mesmo o mesmo número do meu.)

Eu sabia que nunca ia conseguir te esquecer
se não desse uma noite de folga ao meu superego
e me permitisse perder o controle uma vez na vida.

Chego a esquecer
que tentei criar uma máscara
para não te mostrar
os monstros que se escondem aqui dentro,
pois é como se nos conhecêssemos
desde a infância
e fôssemos jovens novamente.

Inconsequentes.

Você corava
como uma donzela
todas as vezes
que nossos olhos se encontravam,
seu rosto contorcido
na tentativa
de conter seu transbordo.

Acendi um cigarro - você,
sem saber o que fazer com os olhos ou com as mãos,
voltou a falar
sobre qualquer coisa que lhe viesse à cabeça.

(Quando não sei o que dizer,
 deixo meu corpo falar.
Quando você não sabe o que fazer,
 deixa sua boca falar.)

Eu queria que você não tivesse começado a falar nunca,
porque eu sabia, no fundo,
o quanto a inevitável ausência da sua voz
doeria mais que não ter te conhecido.