16.4.13

Cinco anos


Lembro que em meados de abril ou maio de 2008 eu estava contando as horas para o dia da matrícula na UFBA. Foram 3 anos tentando entrar, e finalmente havia chegado minha vez. Foi por essa época que recebi uma ligação de um tal de João, dizendo ser do colegiado de meu curso, dizendo que eu não tinha um e-mail cadastrado no sistema e que, sem isso, eu não poderia fazer minha matrícula online. Não entendi nada, porque achava que a matrícula do primeiro semestre tinha necessariamente que ser presencial, mas não era por isso que eu ia querer ficar de fora...

No dia seguinte, peguei quaisquer documentos que julguei serem necessários e pulei no Praça da Sé, pra encarar - pela primeira vez de muitas - a jornada Piatã-Ondina, para resolver o problema. Eu não conhecia absolutamente nada do campus. Caía um chuvisquinho fino, daqueles que mais refresca do que molha, e mesmo assim era um trabalho meio porco, porque ainda assim fazia um calor desgraçado. Desci na portaria principal, perguntei onde ficava o prédio de Letras e foi aí que descobri que desci um ponto antes... Não tinha problema. Era minha primeira vez na UFBA como universitária, eu tinha bastante tempo livre e me prestei a explorar.

Fui andando da portaria principal até o ILUFBA debaixo daquela chuvinha. Lembro de ter ficado encantada - sempre gostei de mato, contanto que não fosse obrigada a viver dentro dele, e aquilo parecia uma trilha de floresta. O cheiro de terra molhada era gostoso, tinha poucas pessoas, fui ouvindo música e olhando os arredores, querendo absorver tudo aquilo.

Chegando no colegiado, me disseram que foi um engano. Não me abalei. Sentei num dos banquinhos na frente do ILUFBA, daqueles que não existem mais, e fiquei olhando pro céu, olhando pros prédios, respirando tudo aquilo, pensando que, pelos próximos anos, aquele seria meu segundo lar.

Hoje lembrei disso tudo, porque fiz o mesmo caminho, só que ao contrário. Em vez de ir resolver supostas pendências da matrícula, fui resolver pendências da colação de grau; ia do Instituto de Letras para a portaria principal, para pegar o BUZUFBA pra ir até a secretaria dar entrada na requisição do diploma; também chovia de leve, e eu era grata pela chuva que aliviava o calor. Pensei em como os ciclos se completam de maneira engraçada, e como, cinco anos atrás, eu nem imaginava como minha vida estaria ao chegar no final da jornada.

Pensei em tantos amigos que fiz, entre canções do Depeche Mode rabiscadas na mochila e livros do Neil Gaiman lidos no intervalo de aulas, entre varandas da Facom e festas na biblioteca, entre avaliações médicas e cicatrizes na perna. Amigos que gostam de David Bowie, Garbage, Jethro Tull ou K-Pop; amigos que estão sempre de boa, seja ensinando joguinhos lúdicos pra galera, seja incentivando os outros a lerem Bauman ou até mesmo me chamando de Travis Touchdown; amigos desses que a gente encontra em show em outro estado e viram inseparáveis. Amigos de Palco do Rock ou de luau no Porto da Barra ou de trabalho, amigos de livros ou música, amigos de copo e de corpo e de alma, amigos que se tornaram meus professores e professores que se tornaram meus amigos, enfim, muita gente. Sem os quais eu não teria sobrevivido a esses cinco anos, provavelmente os mais divertidos e produtivos de toda a minha vida.

Pensei em tudo isso enquanto as bolhas nos meus pés me incomodavam dentro de minhas sandálias - olha aí outra coisa que mudou: eu não usava sandálias cinco anos atrás. Nem tinha bolhas nos pés nesse dia específico - e eu me via traçando o caminho exato de volta do primeiro dia dessa jornada. E agradeci, por todas essas pessoas, por tudo o que aprendi nesse tempo e, principalmente, por estar chovendo e ninguém poder reparar que meus óculos estavam mais molhados por dentro do que por fora.

5.4.13

Dia Z

Quem tem muito pouco tempo para si sabe muito bem que existem apenas três lugares realmente funcionais para se ler um bom livro, independente do dia estar frio ou não e de você ser o Djavan ou não. Por ordem de conforto, são eles: a cama, naqueles minutinhos antes de dormir; o vaso sanitário, naqueles minutinhos de privacidade; e o ônibus, naquele espaço de tempo que pode compreender alguns poucos minutos ou várias horas, a depender da situação do trânsito da cidade em que você vive. Como ler na cama invariavelmente faz com que eu pegue no sono sem nem sentir e acabe deixando o livro todo amassado e babado e sem o marcador de página, e ler por muito tempo nas instalações sanitárias causa hemorroidas (pelo menos pelo que minha mãe me dizia), acabo dedicando aqueles momentos intermináveis de sacolejo rodoviário para botar minhas leituras em dia. Dizem que descola a retina, não sei. Nem sabia que ela era colada, nunca lembrei de perguntar a um oftalmologista se descola mesmo ou se dá pra colar de volta com Super Bonder, mas, mesmo que solte e não dê pra colar de volta mesmo, eu não me importo. Já entro no ônibus com o livro na mão e vou adiantando um ou dois capítulos no caminho pra casa ou pro trabalho.

Hoje não foi diferente, e o livro da vez é "World War Z", de Max Brooks, que peguei emprestado do namorado.

Já chegando perto do meu ponto, lamentei ter que interromper a leitura. Estava numa parte em que alguém contava já se julgar seguro no ponto em que se encontrava, quando de repente um daqueles zumbis sem pernas começa a se arrastar na direção da pessoa pelas costas e... Ouvi um gemido.

Foi aí, inclusive, que levantei os olhos, vi que faltavam apenas três pontos para o meu e concluí que era um bom momento para fechar o livro.

Guardei o mesmo na mochila com todo o cuidado - afinal, não era meu - e foi aí que ouvi o segundo gemido, vindo nitidamente de trás de mim. Cogitei que alguém estivesse talvez fazendo sexo dentro do ônibus, mas logo descartei a ideia. Não era um gemido sexual. Não era sequer um gemido de dor. É o tipo de gemido que a gente faz quando acabou de sair do dentista e ainda tá com a boca torta e anestesiada parecendo o Stallone.

Com o canto do olho, notei alguma movimentação mais ou menos à altura dos bancos. Olhei assustada, e vi que era mesmo uma cabeça. Desci mais os olhos, e dei de cara com um corpo que se arrastava pelo chão do ônibus. Era daí que vinham os gemidos.

Olhei ao redor e constatei que alguns riam da cena, outros olhavam com nojo, alguns ignoravam... Será possível que só eu enxergava o perigo? Seu motorista, pare esse ônibus agora! Cadê meu taco de baseball?
Alguém tem um pé de cabra?

Na falta de arma melhor, me resignei a atacar o zed com minha bolsa mesmo, ainda que isso fosse sinônimo de sacrificar meu querido notebook. Afinal, mais vale ficar sem computador do que ficar sem vida, ou ainda, com uma não-vida, morta-viva, deixa eu parar que já está virando poesia simbolista, certo?

Agarrei firme minha bolsa pelas laterais e me preparei para atacar. E nesse momento o zumbi levantou. Digo, zumbi não. Mendigo. O mendigo levantou, segurou com força na barra do ônibus, soltou mais um gemido profundo e rouco, que eu percebi agora ser um bocejo. Passou alguns segundos dançando no corredor, parecendo indeciso entre o banco vazio à esquerda dele ou seguir pelo corredor. Decidiu sentar.

Aproveitei a brecha para correr pra frente do ônibus. Vai que numa dessas ele se jogava em cima de mim e me mordia, né?