18.7.19

Órion

O céu de chumbo volta a oprimir minha esperança tão adolescente de que a primavera um dia voltará. A natureza, ao que parece, insiste em espelhar o que vai dentro deste receptáculo oco que me habituei a chamar de coração. O vento que sopra pela desolação deste não-lugar é frio e cortante, mas os beijos que este deposita em meu rosto enquanto vago sem rumo certo pelas ruas que aprendi a amar e odiar na mesma proporção chegam a ser tórridos, quando há uma nevasca furiosa e inescapável dentro de mim. Sinto falta do seu toque, panaceia destinada a derreter o inverno que se instalou nas minhas entranhas, e me é doloroso contemplar esse não-futuro da sua ausência que se afigura cada vez mais próximo.

Processo meu raciocínio com uma lentidão excruciante, e talvez por isso eu me pegue, horas, sonhos e mundos depois, repetindo em subvoz tudo o que foi dito e, sobretudo, todo o percebido nas entrelinhas, completando as lacunas das nossas transparências com o que supus ouvir no espaços dos teus raros silêncios. Reviro e repenso ad nauseam cada ideia e as analiso sob todos os ângulos possíveis, numa agonia quase tão acre quanto desesperada e desesperadora de dar sentido ao que não faz sentido algum e criar algum arremedo de ordem no meio do caos. Em parte, aconchego; de resto, solidão.

Ferida e lacerada que estou por traumas dos quais me recuso a desapegar, insisto em gritar em versos surdos para as paredes manchadas a familiaridade desagradável da situação. Nada é original - tudo é reprise, e detesto me repetir. Sei que transfiro. Os personagens mudam, o contexto muda, e há diferenças cruciais que me permitem uma nesga de não sei bem se esperança ou expectativa. Me questiono o tempo todo se é sensato. Sei que não é. Nada faz sentido, mas certa vez me disseram que essas coisas não fazem sentido mesmo, que sentimento não obedece lógica e que esse meu hábito de burocratizar minhas relações é meu jeito de me convencer de que não sou digna de afeto.

Talvez não seja.

Sigo convencida de que o mais lógico seria dar por encerrado este conto de fadas tão bonito que comecei a escrever na minha cabeça, antes que as cicatrizes que começam a emergir na epiderme se tornem indeléveis, mas já cometi o grave erro de julgamento de pular da plataforma mais alta sem parar para avaliar se a adrenalina da queda livre compensaria o impacto ao fim da jornada. Agora, o que me resta é aprender a voar, e minhas asas estão por demais atrofiadas por desuso. O céu é chumbo. O fundo da baía, duro e pedregoso. A espuma na superfície das águas em movimento, deste ângulo, parece reluzir em carmesim, augúrio do que me espera quando o felizes-para-sempre falhar em chegar. Por muito tempo lutei para me manter à tona, mas parece que enfim é chegada a hora de, como nos velhos tempos, soçobrar e naufragar.

5.7.19

Ariadna

O eremita ergueu sua lanterna
mas a chama fugídia de pouco serviu
senão para lançar sombras bruxuleantes,
platônicas,
nas paredes deste labirinto.

Presa fácil, cíclica,
do eterno e inescapável retorno:
à vida, aos amores,
aos humores e dissabores.

Quis crer que encontrei a cura
para esta trajetória execrável,
mas Mercúrio está sempre retrógrado
e minha natureza esquiva
é a própria moléstia a me consumir.

Ao final da meada,
nada é passageiro;
tudo é reprise,
tudo é transferência.

4.7.19

serafina

quero voar
e tenho asas
mas há algo invisível
que me ata
e insiste
em embaraçar
os fios do destino.

o céu castanho
também envelheceu.
já se ilumina
animado pelo burburinho
(da vida,
e, por vezes,
da morte)
e sinto que
quebrei algo
sagrado
(em mim)
e o que era orgulho
despedaçou-se.

agora, nada mais ouço
senão a música das florestas
(cinzentas),
o canto das dríades
insistindo em oferecer
unicidade e
clareza.

do alto
o caos parece
tão pequeno,
tão nítido.

daqui de cima,
as estrelas
nunca foram
tão distantes.

14.6.19

Conexão Interrompida

Tragédia anunciada:
Convertida em revelação
Alívio que suaviza os dias difíceis
Preciso de você (longe)

O inesperado:
Flor ceifada em botão
Morte do que renascia das cinzas
Preciso de você (aqui)

Que este ciclo se encerre,
Se enterre,
Se incendeie e incinere.

Aprender,
sem condicionar a outros
o valor que me dou.

Algum dia, encontrarei
o amor
do outro lado do espelho.

(de outro blog, outros tempos, outras dores,
pra me servir de lembrete - sempre válido -
de que tudo tem prazo de validade,
inclusive o luto por um sonho desfeito.)

13.6.19

Pecadilhos

Perversão das promessas pueris:
palavras proferidas na pulsão do presente.
Peço-lhe, impeça-me.

Impeça-me de pular uma parte portentosa
Do passado pujante que nos prende ao compasso do pretexto
Pedidos perdidos na pressa dos apesares
Sem sopesar o poço profundo dos pesares
Tão próprios de nós.

Piedade, peço-lhe. Impeça-me.
Se porventura pusermos um ponto,
punção perigosa, perene, impiedosa,
perderei-me, pesarosa
nas passagens primorosas
de projetos paralelos,
princípios permissivos presentes no apelo.

Preciso permitir-me parar e apreciar
o pêsame da ruptura primordial
para que possa pesar
a pusilanimidade da peça, um punhal.

Pretensões que pedem-me permissão:
Pinçando do pedestal a prova,
plúmbeas as preces,
a presunção pavorosa
do espaço perigoso entre meus pés
e seus passos pesados.

Da ponta porosa
escapa a prosa.
Da plenitude do peito,
por apressado que pareça o pleito,
permito-me padecer.

31.5.19

anamnese

os detalhes da tua voz.
o timbre e o sotaque e a cadência,
até os trejeitos do teu rosto,
teu sorriso tão tímido,
pontilhado de tristeza e sarcasmo
e estrelas.

voltávamos,
como sempre voltamos,
aos mesmos assuntos.

cíclicos.

te pedi um beijo
quase tarde demais
e era cedo demais para partir.

teu sorriso
chegou aos teus olhos, enfim
e o silêncio em mim
explodiu em cores

o gosto da tua boca,
tabaco e saliva e expectativa,
teus dentes. minhas marcas.

familiaridade.

cinderela sem sapatos,
depois da meia-noite
não há luxos,
apenas luxúria.

no banco da praça,
as pernas por cima das tuas,

memórias de tempos
que não vivemos juntos
mas tão vívidos
e tão antigos,
e tão jovens que somos,
e jovem era a noite.

teu sorriso secreto
destrancou algo em mim.
confiei.

o peso do teu abraço
e os passos embriagados
de pouco álcool e muita vontade
de parar o tempo,
tão sagaz e inclemente.

errando pela noite
nas ruas tão conhecidas
e tão estranhas,
tanto tempo.

a textura da tua mão,
do tamanho exato da minha.

tua linha do coração
me disse que um dia
tu ia ser feliz.

meu coração, desalinhado
não encontrou voz para dizer
que te acompanharia.

e agora, finalmente,
é tarde demais.

1.4.19

Auto-biografia II

Durmo pouco,
bebo café demais
e talvez devesse parar de fumar.

Falo palavrão demais,
mas insisto em calar as verdades
que me corroem o esôfago,
ácidas que são
em seu estado bruto.

Não sei sentar de pernas cruzadas que nem mocinha,
e, na verdade, sempre detestei
as coisas de que
(dizem)
eu devia gostar.

Não sei ser moderada nas opiniões,
nos vícios ou nas paixões.

Choro fácil por tudo
(menos pelo que importa)
e demonstro afeto
com garras e safanões.

Por vezes, acho
que vivo minha vida do avesso,
e que do outro lado do espelho
talvez seja tudo mais simples.

Às vezes, sou nada além
da síntese de todas as expectativas
empilhadas e mal-ajambradas
sobre meus ombros tão jovens
e tão exaustos.

Às vezes me convenço de que tenho jeito;
outras,
do fundo do poço de desesperança,
escavado com as setas que me perfuram,
sustentado pelas pedras que me atordoam,
me resigno a ser apenas eu:

errante na vida, errada sempre.

19.2.19

Profissional

O pastel de queijo com suco de acerola já não passava de uma vaga lembrança e eu ainda tinha quarenta minutos pra matar antes de ir para o trabalho, então sentei no murinho baixo do lado de fora do Sumaré e acendi um cigarro. Quando chego mais cedo, gosto de sentar naquele murinho e observar as pessoas - a essa hora da tarde, ninguém passa por ali sem uma missão específica, e tudo é tão agitado e ao mesmo tempo tão firmemente plantado na rotina que chega ser tranquilizador. É quase como se eu fosse invisível...

...exceto que, desta vez, eu não estava invisível. Nem percebi direito quando ele chegou, absorta que estava em observar o ir e vir alheio. De uniforme de trabalho com logotipo de alguma empresa que não reconheci, a camisa verde aberta até o penúltimo botão, um chapeuzinho preto na cabeça, a pele bem escura manchada aqui e ali pelo sol e a roupa coberta de uma mistura de poeira, cimento e manchas velhas de tinta. Só percebi que estava ali quando ouvi o barulho de seus pertences sendo arremessados no canteiro à minha esquerda. Não precisei olhar duas vezes para perceber que o rapaz tinha bebido mais até aquele momento do que eu nas férias inteiras.

Quando ele percebeu que tinha sido percebido, murmurou algo. Achei que fosse "cigarro", e, sem saber se era uma reclamação, uma tentativa de me dar conselhos ou um pedido, desviei os olhos. De canto de olho, no entanto, ainda consegui reparar quando ele começou a mexer na pilha de pertences, parecendo procurar algo.

- Ei, moça!

Olhei para ele por cima dos óculos.

- !#$#$$¨%¨@$#!#$@!@#você quer?

- Perdão, não entendi.

- Eu achei um pacote de hális aqui, você quer?

- Hein? Não, desculpa, estou de boa, mas obrigada.

- Pega aí, ninha.

- Não, valeu mesmo.

- Pegaí que é pra eu não ficar nervoso.

- ... tá certo. Já que é assim, obrigada. Quer um cigarro em troca?

Mais ou menos nessa hora que um segurança do shopping parou mais perto de nós e ficou ali, olhando discretamente na nossa direção.

- Em troca, não. Mas se você quiser me dar um cigarro só porque é legal, eu aceito.

Peguei o maço na mochila e estendi um cigarro para ele, que ele prontamente encaixou atrás da orelha. Guardei a bala no bolso.

- Você é muito simpática.

- Muito obrigada.

- Não, sério mesmo. Você é gente boa. Um ser humano decente. Coisa rara hoje em dia. Eu tô bem bêbado...

- ...é, eu percebi.

- ...mas olha, eu sou profissional. Digo, não bêbado profissional. Eu tenho uma profissão.

- É bêbado só por esporte, então?

- Aí sim, você sabe das coisas! Mas eu trabalho com construção.

- Por isso o uniforme sujo de cimento?

- É, eu tô todo sujo, que merda, desculpa moça, é chato eu estar todo sujo, mas aí o serviço acabou cedo e eu fui beber. Minha mãe... - e escondeu o rosto nas mãos e virou para o outro lado.

- Desculpa, você está bem? Aconteceu algo com sua mãe?

- Não, ela tá bem, é só que só de pensar no que ela ia dizer se me visse assim eu fico com vontade de chorar. Qual seu nome?

- Dianna.

- O meu é... é... olha, pode me chamar de Lino, tá? Tipo: Liiiiiinoooooo. Parece lindo, mas é Lino. Lindo é seu nome. Dianna. Você tem mãe?

- Ela é falecida há alguns anos.

- Ai, que triste. Meu pai também. Mas é recente. 

- Bom, sinto muito.

- Você é casada?

- Sou. - Nessa hora, caiu a ficha de que eu estava virtualmente sozinha, conversando com um desconhecido muito bêbado no meio da rua. Não passava pensamento com azeite.

- Você é legal. Não queria perder o contato. Você mora onde?

- ... - cuspi o primeiro nome de bairro que não fosse o meu que me veio à cabeça.

- Ah... legal, legal. Você é legal. A gente pode se ver num dia em que eu esteja mais sóbrio?

- Não sei se meu marido ia gostar.

- Ahhhhh. Hahaha. É verdade. Você é direita mesmo, gosto de você. Até queria dizer que... Ai, mas eu fico com vergonha.

- É, bom, eu preciso ir trabalhar.

- Negona... desculpa, negona é forma de dizer, tá? É carinhoso.

- Eu sei, relaxe.

- Eu preciso te confessar um negócio. É sério.

- ... diga aí.

- Eu nunca peguei uma mulher... assim, uma mulher bonita.

Não consegui conter uma gargalhada.

- É sério! Eu juro! Só peguei mulher feia a vida toda!

- Olha... Lino, né? Foi um prazer te conhecer, mas deu minha hora de verdade. - Estendi a mão para o rapaz. Achei que era o mínimo que eu devia pela gargalhada. 

Ele não fez nem sinal de retribuir o aperto de mão. Me olhou desconfiado, como se algo não estivesse certo.

- Não vai apertar minha mão não, rapaz?

- Mas você já vai?

- Já, tenho horário, eu falei. Vai pra casa, bicho. Cê tem mãe, ela deve estar preocupada.

Ele continuou me olhando como se um terceiro braço tivesse saído do meu pescoço. Joguei a mochila nas costas e fui pro trabalho, agora realmente na minha hora. Lino ficou lá. A bala ainda está no meu bolso. Espero que tenha chegado vivo em casa.

Silêncio

Eu não queria que você parasse de falar nunca.
É estranho, né?
Eu nunca soube bem como definir isso,
mas acho que gosto mais de ideias do que de pessoas.

E você falava bem sobre suas ideias,
e eu não queria que você parasse de falar,
porque quanto mais você falava,
mais eu me apaixonava pela ideia de você.

(Acho que acabei me apaixonando
pela imagem de você que eu criei
com base no que você escolheu me mostrar
e o resto eu fui preenchendo
com minhas próprias expectativas.)

Mas tudo que é incrível
um dia tem que acabar,
e você parou de falar,
e eu fiquei sem saber o que fazer
com tanto pathos
querendo escapar desarrazoadamente pela minha boca,
e eu não queria te assustar
com a tormenta que se formava dentro de mim,
então eu te beijei
pra tentar amenizar a intensidade
do que eu estava sentindo.

Eu não queria que você parasse de me beijar nunca.
É estranho, né?
Parece que seus lábios falam a minha língua
de todas as formas possíveis.

E o que era intenso transbordou,
e eu não podia suportar mais a ideia
de terminar a noite
sem sentir o calor da sua pele.

(Doía pensar que depois daquela noite
eu iria embora
e talvez eu nunca mais te visse
e talvez morresse sem saber
se seu corpo era mesmo o mesmo número do meu.)

Eu sabia que nunca ia conseguir te esquecer
se não desse uma noite de folga ao meu superego
e me permitisse perder o controle uma vez na vida.

Chego a esquecer
que tentei criar uma máscara
para não te mostrar
os monstros que se escondem aqui dentro,
pois é como se nos conhecêssemos
desde a infância
e fôssemos jovens novamente.

Inconsequentes.

Você corava
como uma donzela
todas as vezes
que nossos olhos se encontravam,
seu rosto contorcido
na tentativa
de conter seu transbordo.

Acendi um cigarro - você,
sem saber o que fazer com os olhos ou com as mãos,
voltou a falar
sobre qualquer coisa que lhe viesse à cabeça.

(Quando não sei o que dizer,
 deixo meu corpo falar.
Quando você não sabe o que fazer,
 deixa sua boca falar.)

Eu queria que você não tivesse começado a falar nunca,
porque eu sabia, no fundo,
o quanto a inevitável ausência da sua voz
doeria mais que não ter te conhecido.