4.10.11

Dia 04 - O Imperador

Que gatos são criaturas com porte de realeza e acostumadas a ter suas demandas cumpridas, todo mundo já tá cansado de saber. A questão é que, lá em casa, o rei mesmo era meu pai, e ele já tinha declarado com sua voz de trovão que nem pensar, chega de gato nessa casa, não aguento mais você e essa sua mania esquisita de adotar tudo que é felino que vê pela frente e ainda por cima colocando nome de gente. É um tal de Raoul, Edgar, Lili, Léo, o caralho a quatro, e agora Vicente? Não senhora, não debaixo do meu teto. Então, com muito pesar, coloquei o gato cinzento raiado de cinza mais escuro que tinha encontrado debaixo da marquise durante a chuva do dia anterior, no patamar da porta da frente e fechei, Tinha certeza de que ele conseguiria se virar sozinho. Afinal, crescera na rua, e, se fosse esperto, ficaria por perto dali onde tinha conquistado uma amiga e comida fácil.

Voltei pra dentro do quarto e me enrosquei na cama com Raoul, o gordo, enquanto tentava me convencer de que tudo ficaria bem. De alguma forma, o gato parecia ainda maior do que eu me lembrava, como se para ocupar o próprio espaço e o do irmãozinho que quase ganhou. Nem senti o tempo passar. Acho que devo ter cochilado, sei lá. Só sei que, quando dei por mim, a gataiada toda estava empoleirada na minha cama, o mostrador do relógio digital me dizia com seus olhos vermelhos que eram quase três da manhã, e tinha alguma coisa raspando minha janela por fora.

Demorei um pouquinho pra conseguir sair da cama sem desalojar todos os outros ocupantes, e fui meio com medinho ver que diabo de barulho era aquele. Se aquilo fosse um pesadelo ou um filme de terror, com certeza um monstro estaria me esperando do outro lado, mas eu tinha alguma esperança de estar acordada de verdade. Respirei fundo e contei até três antes de abrir a janela, e, do outro lado da tela, Vicente miava baixinho, encarapitado num galho de árvore. Soltei a tela em uma das pontas e acolhi o bicho, meio sem saber o que estava fazendo. Se meu pai me pegasse com ele ali, não ia ter “ele me seguiu até em casa, posso ficar com ele?” certo, que esse não é o tipo de papo que cola cinco vezes. Mas essa noite eu não ia deixar o bichinho dormindo na rua. Fechei a janela de volta, avisei aos filhotes que era para fazerem silêncio e desci pra buscar comida, tanto pra eles quanto pra mim.

Era uma hora um tanto incomum pra se pegar comida de gato na cozinha, então era importante que eu fizesse o mínimo de barulho possível para que meu pai não percebesse que eu estava por ali. Tudo bem que ele, minha madrasta e meus avós deveriam estar no décimo sono, mas velho tem tudo sono leve e meu avô andava com a mania de acordar no meio da madrugada pra ir ao banheiro. Desci as escadas e entrei na cozinha na ponta dos pés. Abri as portas dos armários devagarzinho, com medo de fazer barulho, mas não encontrava a ração em canto nenhum. Encontrei uns biscoitos muito esquisitos, botei alguns em um prato pra mim, peguei um pouco de carne moída crua e sem tempero na geladeira pro gato e comecei a subir de volta, quando vi uma sombra larga e muito alta se mexendo no corredor lá em cima. Só podia ser meu pai. Entoquei a carne atrás de um vaso de plantas (aliás, o que um vaso de plantas estava fazendo no meio da escada?) e continuei subindo devagar, matutando uma desculpa qualquer pra estar comendo biscoitos as três e meia da manhã, quando vi Vicente andando tranquilamente. No teto. Não fazia o menor sentido, mas fiquei mais preocupada em chamar a atenção dele pra ele se esconder do que com o fato de que as leis da gravidade aparentemente foram revogadas por algum juiz meio maluco. Mas nessa justa hora o gato resolveu começar a miar. Ouvi barulhos de passos ecoando ao meu redor, e aquela escada parecia nunca mais ter fim. Comecei a correr, agora verdadeiramente assustada, mas a porta do meu quarto não aparecia de jeito nenhum. E o gato miando, no teto, nas paredes, por todos os lugares.

Abri os olhos. Demorei para reconhecer meu quarto de verdade. Os miados continuavam. Abri a porta e deixei Edgar, o único gato da casa, entrar e se alojar na minha cama, enquanto eu me arrumava para ir trabalhar. Definitivamente, amanhã não vou dormir com carta de tarô nenhuma debaixo do travesseiro.

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