30.9.11

Dia 00: O Louco

Todo dia eu acordo e os raios de sol entram pelo mesmo ângulo pela janelinha do quarto, diluídos pelos prédios e paredes e janelas. Todo santo dia é dia de acordar escovar os dentes tomar banho comer juntar as coisas na mochila sair correndo, assim mesmo, sem vírgulas nem pausas pra respirar. Todo dia chego atrasada. Todo dia corro contra o tempo, como se apostasse com o dia qual de nós terminaria sua jornada primeiro, e sempre perco. Todo dia estresse, cansaço, desilusão. Todo dia sonho acordada com o dia em que vou acabar com essa merda de rotina que um dia vai acabar me matando ou enlouquecendo, um ou outro, quem sabe os dois. Escrevo na minha cabeça mil e uma histórias pra justificar esse existir sem prazer, essa submissão desgraçada, essa falta de coragem pra mudar o que me incomoda, e nenhuma é boa o bastante pra me convencer de que tem alguma coisa certa na história canônica da minha vida. Eu quero é voar por aí, cansei de ficar que nem água empoçada presa sempre na mesma vidinha medíocre. Eu quero liberdade. A liberdade de sonhar quando e o quanto eu quiser, a liberdade de ir aonde meu coração mandar. Um dia, junto todas as minhas tralhas e destroços numa trouxa e parto sem rumo. Um dia, vou encontrar algum canto onde o sol me acorde sem intermediários. Um dia, vou acordar e fazer as coisas no meu ritmo, sem culpa nem desespero, e uma vez que seja vou me permitir enlouquecer só pra saber como é fazer isso de propósito. Um dia eu vou ser feliz do jeito que quero e acho que mereço, seja no fundo do poço ou no alto de um penhasco. Até lá, vou cultivando minhas rosas brancas e tentando fazer as pazes comigo mesma.

24.9.11

Dançando com as sombras nas paredes

Eu devia ter uns 12 anos. Desde cedo sofro de crises de insônia, alternadas com dias em que, se deixar, passo de 48h seguidas na cama. Essa foi uma das crises de insônia. Rolava pra lá e pra cá e não conseguia afundar no sono. Desisti de dormir e liguei o rádio. A música me embalava, me animava. Comecei a dançar sem sequer levantar da cama. O sono, já perdido havia horas, resolveu se mandar de uma vez. A aula do dia seguinte que se fodesse: até as duas horas da manhã, ouvi música atrás de música, clássico atrás de clássico. Nunca mais parei.

Esse tipo de reminiscência me pegou completamente desprevenida enquanto, do alto de meu tédio insone noite dessas, me peguei ouvindo música baixinho, fones de ouvido bem atochados em meus canais auditivos, encolhida no cantinho da cama abraçada com um dos bichos de pelúcia. Eu cantarolava pra espantar a ansiedade, meros murmúrios, mas parecia que o sono é que se afastava de mim cada vez mais e mais rápido.

Música não me ajuda a dormir. Nunca ajudou. Dormir é deixar de existir por algumas horas que sejam, o suficiente pra recuperar o ânimo pra encarar o sofrimento de trabalhar de sol a sol. Dormir é letargia, é suspensão temporária.

Música me ajuda a viver.

23.9.11

Free bird

It was summer. The damp breeze
Didn't do much to cool our spirits
The blue sky was tempting
Back itching with wings born anew

Frightened as a young bird I was
Struggling to forfeit nest and safety
The unexpected to come, the life left behind

Still the wind called
The open road urged me on
Split me open and seize the agony
Moving kept me alive

I resigned. Flung the backpack
over my shoulder and kissed
Dad goodbye.
Tears and wavings
Empty the nest, my dreams await.

I haven't gone back ever since.

18.9.11

Inícios

Eu gosto de inícios.

A primeira chuva do inverno, a primeira brisa quente do verão. Tudo que é novo me fascina, me instiga. Espírito curioso que sou, quero destrinchar tudo, desvendar os mistérios, me apropriar do inexplorado. O primeiro beijo. A primeira vez sorrateira, escondida atrás de um muro. A primeira vez que chorei.

Inícios me inspiram. Inícios me trazem esperança, a esperança de que, eventualmente, tudo vá dar certo.

Não consigo, no entanto, escrever sobre finais.

Nunca sei terminar um texto; odeio escrever poemas porque sempre me parece faltar algo no último verso. Meu sonho é um texto infinito, uma série de textos entrelaçados cujas últimas linhas sejam sempre as primeiras do próximo, um eterno ciclo... Odeio finais. Odeio ser lembrada, a cada instante, de que tudo tem prazo de validade, data hora local certos para se encerrar, tudo fenece, tudo perece. Nada nunca vai ser eterno, nem mesmo o tempo, e isso me angustia.

Queria um amor que fosse como meus textos: só inícios. A cada dia, um novo começo,  até que chegasse ao fim. E no destino inexorável de todas as coisas, que fosse como iniciar um novo ciclo.

Quem sabe assim um dia eu não consigo começar a ser feliz?

17.9.11

Cicatriz

Começou com um ato falho. De minha parte, é claro. Devo ser a rainha dos deslizes verbais, especialmente quando é, de alguma forma, importante pra mim. De qualquer forma, com um ato falho começou e eu sequer perdi o fôlego. “Você pode ou não considerar isso uma cantada, você é quem sabe”, eu disse. E todas as vezes que o vi depois fingi que nada tinha acontecido. Até o dia em que decidi que ou era, ou não era, e fodam-se as convenções sociais porque não são elas que vão encher minha barriga ou pagar minhas contas.

E foi. Não me perguntem como, mas foi. E eu gostei, ainda que as lembranças se resumam a um borrão vermelho em minhas lembranças. Borrão vermelho, sinal de que foi bom. Lembro da frustração de faltar um detalhe e isso (não) foder com tudo. E de abotoar meu sutiã e sair andando, embriagada tanto do álcool quanto do corpo que segundos antes estava contra o meu, poucos momentos antes da queda. Lembro de deixar minha marca gravada, como uma assinatura doentia, vampira que sou, em um pescoço. Lembro de sussurros ao pé do ouvido. Lembro de convites, originalmente aceitos e depois recusados. E nada mais.

Não há necessidade de perguntas. Nos meus olhos, na minha pele, sinais de como estou. Não é o frio que faz gelar minha pele. Não é a indignação que faz meus olhos faiscarem. Não é a solidão que me aflige.

São as promessas feitas. E as subentendidas.

E que esta história fique por aqui. Afinal, para bom entendedor...

16.9.11

Inverno



O inverno já tá ali na portinha, quase se despedindo, e eu aqui, passando frio por opção. Meu frio é diferente, não é desses que arrepiam a pele e deixam as extremidades dormentes; o arrepio é na alma e foi meu coração que parou de sentir. Nada tá fazendo sentido, e, por mais que eu me embrulhe no cobertor e reze pra tudo quanto é deus pra me manter aquecida, o diabo do frio não passa. Me enrosco com os bichos de pelúcia e tremo mais que não sei o quê, mas o diabo do frio continua aqui, vindo de dentro pra fora, congelando tudo por onde passa. Já tô ficando azul, roxa, sei lá, toda uma paleta de cores relacionadas a gelo. Os dias passam, e eu cada vez mais deixando de ser gente e virando pedra e torcendo pra essa merda de inverno acabar logo pra começar a derreter.

E aí chega o sol e eu sou só sorrisos. Cuidado, sol, pra não escorregar nessa poça d'água que costumava ser eu.

10.9.11

A última vez em que fiz amor


Cansei de olhar pro teto manchado de umidade, as paredes amareladas de nicotina. Procurei o que restou de minha razão em todas as marcas indistintas que me cercam, e, não tendo encontrado em nenhuma, simplesmente desisti. Gritos de violência ecoam no exíguo espaço em que me encontro, e sequer esses gritos parecem me compreender. Nunca me senti tão só. A música alta não dialoga com meus sentimentos; a solidão não mais me refugia. Cansei de exibir sempre a mesma identidade, a mesma ideologia, a mesma idiotice. Parece que nasci ao contrário, que me perdi de quem devia ser em algum ponto do caminho. Grito de volta para a música até que minha garganta arranhe, minha cabeça pareça explodir, meus ossos vibrem de agonia. Arremesso objetos pelo quarto, espalho destroços, tento me esconder na minha alma, mas a dor aqui dentro é grande demais e até mesmo meu corpo me rejeita. Não me envergonho das minhas feridas, mas gostaria que elas doessem menos. Não me orgulho de minhas cicatrizes, mas gostaria que essas marcas fossem apenas externas. Sangro por dentro, e esse sangue é negro e ácido. Tenho medo de que me envenene e corroa até que seja impossível recuperar qualquer coisa que preste. Se é que ainda há algo que preste aqui dentro de mim. As manchas de umidade e fumaça nas paredes nuas e descascadas: é isso que sou. É isso que me representa. O descaso e a constância do vício, de um vício qualquer, de todos os vícios. Me viciei demais nessa não-vida. Me entreguei demais a tudo na esperança de fugir daquilo que mais me importava. Fugi da luz, me habituei à escuridão. Não se consegue sair do buraco sem antes chegar ao fundo do poço, e eu cheguei. Agora, cá estou eu acenando e gritando, e não existe um bom coração que seja disposto a me arremessar uma corda ou sequer estender a mão pra facilitar a escalada de volta ao mundo dos vivos. Não sou decadente, pois não há mais como decair. Do ponto onde me encontro, só o inferno me parece uma rota viável. Não tenho mais forças para subir, então, para baixo é que vamos. Não há ninguém pra me pedir que eu sobreviva a isso. Ninguém que morreria por mim. Só eu. E esse é o mínimo que eu posso fazer por mim mesmo. Para me poupar de maiores apodrecimentos. Um dia, tomo coragem e acabo com tudo. Algum dia muito em breve. Talvez agora mesmo, quem sabe? A arma carregada ao lado da escrivaninha me parece propícia. Meus dedos famintos por ação; os sentimentos cuidadosamente embalados em uma caixa, prontos para o distanciamento frio que este ato corajoso exige. É só relaxar e ir dormir. Um leve fisgar, é isso. Um leve fisgar de carne dilacerada e está terminado. Sinto a carne rasgar na boca do estômago, e a dor lancinante quase me nubla os sentidos. Escorro em direção ao chão, como uma trouxa de roupa suja dobrada sobre si mesma. Eu não podia morrer de forma pacífica, precisava sofrer. Meu purgatório em vida. O sangue empapa minha camisa, nódoa vermelho escuro quase imperceptível no tecido negro, e começa a empoçar no chão. Não quero que o abraço da morte seja tão breve – quero fazer amor com ela, quero que a entrega seja completa. Dói pra caralho. Nunca nada doeu tanto assim. Enquanto a morte me enraba, a vida me abandona, emputecida pela traição. Meu último pé na bunda. O sangue já deixa um rastro até a porta do quarto. Ninguém nunca me disse que morrer era tão doloroso. Minha visão está turvada, e eu só consigo discernir o rosto da minha última amante. Ela me olha nos olhos, e não consigo amar nada do que vejo lá. É a vida, a minha vida, sendo refletida de volta pelas órbitas negras, sem julgamentos, sem piedade. A morte é minha última puta, e nem ela me oferece conforto. Sei que tomei a decisão certa quando sinto seu desprezo. Fecho os olhos uma última vez, o momento final de desespero eternamente gravado em minhas retinas. Deixo escapar um suspiro. A morte me toma pela mão, me oferece mais um cigarro e finalmente um pouco de compaixão, e partimos juntos. Meu corpo agora não passa de um mero amarfanhado de roupas e sangue embolados no chão. Antes de partir de vez, percebo um leve sorriso doentio finalmente brotando em meus lábios. Alívio, enfim. Acabou.

9.9.11

Desapego

E é um círculo sem fim. Acaba, parte pra outra, dá errado, dois passos pra trás e segue em frente. Até o  dia em que não me recuperar da queda. Até o dia  em que não me sobrar outra opção que não o vazio do desespero, de vegetar observando os buracos e imperfeições do teto me perguntando o que fiz da minha vida.

5.9.11

Das tantas coisas que não sei

Anda, me dá um cigarro. Eu preciso desabafar. Não me olha desse jeito, eu sei que falo demais, mas hoje é necessário. Eu queria, só por um dia, ser capaz de fingir. De sorrir quando quero chorar; de franzir o cenho e ostentar preocupação quando na verdade nada me abala. Como assim, eu finjo bem? O único fingimento que aprendi diz respeito a fazer de conta que sou uma estátua. Eu queria saber disfarçar, também. Por exemplo, pra olhar nos olhos sem denunciar o que vai no coração, ou desviá-los quando nada têm que fazer em determinada direção. Não faz graça. Olha que eu fujo, hein? Fica quieto e deixa eu continuar. Sabe o que mais eu queria? Saber quando ser ou quando não ser eu mesma. Quando me permitir e quando me resguardar. Eu sei, querido. Eu perco a linha fácil, não precisa jogar na minha cara. Eu precisava era, ainda que por poucas horas, ter tanto bom senso quanto se espera de mim. Ou quanto seria necessário pra me manter viva. Eu queria aprender a hora certa de calar minha boca. Como, por exemplo, agora.