10.9.11

A última vez em que fiz amor


Cansei de olhar pro teto manchado de umidade, as paredes amareladas de nicotina. Procurei o que restou de minha razão em todas as marcas indistintas que me cercam, e, não tendo encontrado em nenhuma, simplesmente desisti. Gritos de violência ecoam no exíguo espaço em que me encontro, e sequer esses gritos parecem me compreender. Nunca me senti tão só. A música alta não dialoga com meus sentimentos; a solidão não mais me refugia. Cansei de exibir sempre a mesma identidade, a mesma ideologia, a mesma idiotice. Parece que nasci ao contrário, que me perdi de quem devia ser em algum ponto do caminho. Grito de volta para a música até que minha garganta arranhe, minha cabeça pareça explodir, meus ossos vibrem de agonia. Arremesso objetos pelo quarto, espalho destroços, tento me esconder na minha alma, mas a dor aqui dentro é grande demais e até mesmo meu corpo me rejeita. Não me envergonho das minhas feridas, mas gostaria que elas doessem menos. Não me orgulho de minhas cicatrizes, mas gostaria que essas marcas fossem apenas externas. Sangro por dentro, e esse sangue é negro e ácido. Tenho medo de que me envenene e corroa até que seja impossível recuperar qualquer coisa que preste. Se é que ainda há algo que preste aqui dentro de mim. As manchas de umidade e fumaça nas paredes nuas e descascadas: é isso que sou. É isso que me representa. O descaso e a constância do vício, de um vício qualquer, de todos os vícios. Me viciei demais nessa não-vida. Me entreguei demais a tudo na esperança de fugir daquilo que mais me importava. Fugi da luz, me habituei à escuridão. Não se consegue sair do buraco sem antes chegar ao fundo do poço, e eu cheguei. Agora, cá estou eu acenando e gritando, e não existe um bom coração que seja disposto a me arremessar uma corda ou sequer estender a mão pra facilitar a escalada de volta ao mundo dos vivos. Não sou decadente, pois não há mais como decair. Do ponto onde me encontro, só o inferno me parece uma rota viável. Não tenho mais forças para subir, então, para baixo é que vamos. Não há ninguém pra me pedir que eu sobreviva a isso. Ninguém que morreria por mim. Só eu. E esse é o mínimo que eu posso fazer por mim mesmo. Para me poupar de maiores apodrecimentos. Um dia, tomo coragem e acabo com tudo. Algum dia muito em breve. Talvez agora mesmo, quem sabe? A arma carregada ao lado da escrivaninha me parece propícia. Meus dedos famintos por ação; os sentimentos cuidadosamente embalados em uma caixa, prontos para o distanciamento frio que este ato corajoso exige. É só relaxar e ir dormir. Um leve fisgar, é isso. Um leve fisgar de carne dilacerada e está terminado. Sinto a carne rasgar na boca do estômago, e a dor lancinante quase me nubla os sentidos. Escorro em direção ao chão, como uma trouxa de roupa suja dobrada sobre si mesma. Eu não podia morrer de forma pacífica, precisava sofrer. Meu purgatório em vida. O sangue empapa minha camisa, nódoa vermelho escuro quase imperceptível no tecido negro, e começa a empoçar no chão. Não quero que o abraço da morte seja tão breve – quero fazer amor com ela, quero que a entrega seja completa. Dói pra caralho. Nunca nada doeu tanto assim. Enquanto a morte me enraba, a vida me abandona, emputecida pela traição. Meu último pé na bunda. O sangue já deixa um rastro até a porta do quarto. Ninguém nunca me disse que morrer era tão doloroso. Minha visão está turvada, e eu só consigo discernir o rosto da minha última amante. Ela me olha nos olhos, e não consigo amar nada do que vejo lá. É a vida, a minha vida, sendo refletida de volta pelas órbitas negras, sem julgamentos, sem piedade. A morte é minha última puta, e nem ela me oferece conforto. Sei que tomei a decisão certa quando sinto seu desprezo. Fecho os olhos uma última vez, o momento final de desespero eternamente gravado em minhas retinas. Deixo escapar um suspiro. A morte me toma pela mão, me oferece mais um cigarro e finalmente um pouco de compaixão, e partimos juntos. Meu corpo agora não passa de um mero amarfanhado de roupas e sangue embolados no chão. Antes de partir de vez, percebo um leve sorriso doentio finalmente brotando em meus lábios. Alívio, enfim. Acabou.

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