15.10.11

Bárbara

Era uma explosão sensorial. Beirava o excesso de informação, mas, ainda assim, mantendo um mínimo de bom gosto. A pele muito branca, o cabelo muito preto, o batom muito vermelho. Os olhos variavam entre o cinza claro da luz do sol e o azul escuro das nossas noites à luz de velas, e viviam pintados de muito preto-cinza-fumaça. Cortesia da Avon ou da Natura ou sei lá onde que ela achava tanta maquiagem escura. Eu achava misterioso, dramático, profundo. Hoje penso que só fazia dar àquele rosto uma aparência meio de panda. Até o nome dela tinha algo de feral, de animalesco, de selvagem: Bárbara.

Pior que a desgraçada era gostosa pra caralho. A cintura fina, gostosa de abraçar, e as pernas longas e macias e lisas e agradavelmente roliças que se embolavam com as minhas, misturando nossos suores e secreções. A boca tinha gosto de cigarro de cravo, de vodka e cereja, de pecado daqueles que te levam direto pro segundo círculo de Dante. Os seios redondos, enormes, macios, os mamilos rosados olhando pra mim, apontando pra minha cara e me desafiando a decifrá-los. A pele... bom, a pele tinha um gosto só dela, meio de suor e feromônio. Pra mim ela sempre me pareceu meio suja, mas não de um jeito nojento, sabe? Suja-chic, suja deliberada, suja de auto-afirmação. Tudo nela, aliás, era sujo – os pensamentos, os desejos, as palavras.

Não é que eu nunca tenha comido uma mulher antes dela. Aliás, talvez seja: antes da Bárbara, só tinha comido meninas. Acho que ela foi a primeira Mulher, assim mesmo, com eme maiúsculo, com quem eu tive a oportunidade de foder. E fodíamos. Diariamente, onde quer que nos encontrássemos, da forma como desse. E, puta que pariu, era bom. Era tão bom que eu até esquecia quem eu era. Comer Bárbara anulava totalmente meu ego, meu superego, meu id, meu caralho a quatro. Eu era só sensação. E ela percebia isso, e se aproveitava disso, e lá vou eu, moça-certinha-com-reputação-a-zelar, me viciando e me perdendo e pedindo perdão a deus toda santa noite antes de dormir só pra pecar de novo no dia seguinte com a consciência mais leve. Ela se divertia com minha confusão. Adorava rir da minha cara e desconstruir pedacinho por pedacinho de tudo que eu acreditava e dizia e julgava, até me deixar mentalmente e emocionalmente tão incapacitada quanto fisicamente. Vagabunda sádica. Foi depois da Bárbara que eu virei atéia, porque até a capacidade de acreditar ela me sugou.

Viver com ela era um pesadelo Lynchiano. Como toda mulher que tem o poder de virar o mundo de cabeça pra baixo – e ela era dessas –, Bárbara era completamente maluca. De eu chegar em casa, cansada do trabalho, e dar de cara com ela nua, sentada no chão na frente do espelho, um bocado de velas acesas, dizendo que se o apocalipse começasse ela queria ser a primeira a ir pro inferno, e gritando que queria que eu a fodesse como a puta baixa que era, sem o menor respeito pela decência ou pelos vizinhos. De ler minha sorte na palma da minha mão ou nas cartas de tarô e dizer que eu só seria feliz sozinha, ou com um homem, ou que eu ia morrer antes dela e que ela passaria o resto da vida de luto e se isolaria num convento. De brigar com facas – ainda tenho as cicatrizes nas costas da mão e na coxa direita – e depois fazer sexo violentamente, e acabar a noite com ela ronronando feito um gatinho implorando pra eu nunca abandoná-la. Eu sempre prometia, meio emocionada, meio preocupada.

Um dia, ela é quem me abandonou.

Abri a porta com cuidado, sem saber qual seria a palhaçada da vez. Estava preparada pra encontrar um bode sacrificado em cima da mesa de jantar, um palco de teatro vaudevilesco, um rastro de pegadas de sangue, uma orgia de doce e pico, qualquer merda dessas, mas vê-la ali, sentada calmamente no sofá, as malas prontas aos pés, me deixou boquiaberta. Bárbara me esperava, vestida  com uma de suas roupas mais convencionais, a cara limpa de maquiagem. O cabelo preto, comprido, escorrido, preso numa trança. Já tinha visto Bárbara com todas as roupas – ou falta delas – possíveis, com as mais variadas maquiagens experimentais, mas nunca a vi tão... esquisita. Disse que não aguentava mais, que viver comigo tava transformando ela em alguém que ela não reconhecia, que me amava mas que não dava pra ir em frente, e começou a chorar. Foi nessa hora, acho, que entrei em parafuso. Eu queria gritar, chorar, implorar, mas só consegui ficar parada ali, no meio da sala, a bolsa e a chave de casa ainda nas mãos, quando ela levantou, colocou a chave dela em cima da mesa, me deu um beijo no canto da boca e saiu sem dizer mais nada. Levou uma meia hora pra ficha cair.

Ainda hoje tento entender. Ainda hoje não me recuperei do furacão que ela foi em minha vida. Ainda hoje é pensando nela que me toco furiosamente. Ainda hoje não me conformo, e continuo procurando pedacinhos dela em tudo que é vagabunda louca que encontro pelos becos escuros da vida.

Acho que ela estava totalmente errada. Não foi ela quem se transformou em mim aos pouquinhos. Eu que me transformei nela.

Perdas sem danos (ou a arte de perder)

Se desfazer das coisas é umm hábito viciante.

Começa quando, por inocência ou convicção ou simplesmente pressão da sociedade, você decide abandonar a carne. Todo mundo te chama de louco, mas você tenta mesmo assim e vê que nem é tão difícil, nem é tão desafiador. Claro que tem seus percalços, mas não são tão difíceis de contornar. Então você parte para algo mais complicado, e resolve abandonar o refrigerante também. Percebe que, no processo, acabou abandonando uns bons 10kg e metade das roupas do armário, que já não te servem. Mas não é o bastante, nunca é, e ai é que fica perigoso, porque a gente sempre quer mais do que já conseguiu. Mesmo quando o negocio é perder.

Elizabeth Bishop disse que a arte de perder não é tão difícil de dominar. É verdade. Começo a desejar perder a bebida, o cigarro, as noites perdidas - me pergunto se é possível perder algo que se perde leviana e deliberadamente - as drogas, os amigos, o café, as cores, os amores, o sexo, até por fim perder a identidade e não ter mais o que perder. Não sei o quanto mais sou capaz de perder antes de me perder de mim mesma, mas acho que não seria uma perda tao grandiosa assim. Afinal, eu mesma já estou perdida. 

Quem sabe me perdendo pelo caminho eu não seja capaz de me encontrar?

12.10.11

Dias

Um daqueles dias em que a tristeza te pega de jeito pelo cangote e te joga na cama sem mais nem porque e não te dá nem meia chance de espernear, de contestar a injustiça de tudo aquilo. Um daqueles dias que começa já de noite, as horas se arrastando numa espiral rumo à madrugada, tudo sem sentido, sem objetivo, sem nada. 

Sei lá. Essa falta de perspectiva é o que me mata. Esse não saber pra onde se vai e de onde se está indo. Essa... insegurança na vida. Parece que esqueci de crescer, sei lá. É de festa em festa, de bar em bar, e o dinheiro que vai se acabando, e a diversão que se torna rotina e começa a azedar, e a sensação de que se está se permitindo o lazer por pura obrigação pra desafogar de todo o trabalho, estudo e sei mais lá o quê. 

E é aí que eu percebo que trabalho feito uma condenada seis dias por semana noventa horas por mês e estudo feito uma louca quatro dias na semana sessenta horas por mês e tudo isso pra que? Pra ser alguém na vida e ter dinheiro pra realizar meus sonhos? O dia em que eu conseguir juntar dinheiro pra realizar meus sonhos estarei velha demais pra sonhar, quiçá pra aproveitar tudo o que juntei. Esse dinheiro vai virar remédio, internação hospitalar, asilo pra me confortar na velhice que se aproxima com passos lépidos e a boca escancarada de fera voraz. E aí eu vou deixando de viver pouquinho em pouquinho, só pra poder um dia morrer em paz. 

É isso: a gente vai vivendo um dia de cada vez só pra poder morrer com dignidade. Pois eu me recuso a morrer com essa dignidade plastificada, forjada, planejada. Eu quero viver. Eu quero a vida correndo nas minhas veias com a velocidade do tiro que destroça as entranhas do traficante morto na sarjeta. Eu quero a vertigem, a emoção, quero a porra do pathos todo. Quero curtir a trocentos milhões por hora a onda de viver.

E quando baixa a onda, minha bad trip consiste em me perguntar, bêbada, numa mesa de bar: pra que é que serviu essa merda toda mesmo, se no final continuo no mesmo ponto onde comecei?

4.10.11

Dia 04 - O Imperador

Que gatos são criaturas com porte de realeza e acostumadas a ter suas demandas cumpridas, todo mundo já tá cansado de saber. A questão é que, lá em casa, o rei mesmo era meu pai, e ele já tinha declarado com sua voz de trovão que nem pensar, chega de gato nessa casa, não aguento mais você e essa sua mania esquisita de adotar tudo que é felino que vê pela frente e ainda por cima colocando nome de gente. É um tal de Raoul, Edgar, Lili, Léo, o caralho a quatro, e agora Vicente? Não senhora, não debaixo do meu teto. Então, com muito pesar, coloquei o gato cinzento raiado de cinza mais escuro que tinha encontrado debaixo da marquise durante a chuva do dia anterior, no patamar da porta da frente e fechei, Tinha certeza de que ele conseguiria se virar sozinho. Afinal, crescera na rua, e, se fosse esperto, ficaria por perto dali onde tinha conquistado uma amiga e comida fácil.

Voltei pra dentro do quarto e me enrosquei na cama com Raoul, o gordo, enquanto tentava me convencer de que tudo ficaria bem. De alguma forma, o gato parecia ainda maior do que eu me lembrava, como se para ocupar o próprio espaço e o do irmãozinho que quase ganhou. Nem senti o tempo passar. Acho que devo ter cochilado, sei lá. Só sei que, quando dei por mim, a gataiada toda estava empoleirada na minha cama, o mostrador do relógio digital me dizia com seus olhos vermelhos que eram quase três da manhã, e tinha alguma coisa raspando minha janela por fora.

Demorei um pouquinho pra conseguir sair da cama sem desalojar todos os outros ocupantes, e fui meio com medinho ver que diabo de barulho era aquele. Se aquilo fosse um pesadelo ou um filme de terror, com certeza um monstro estaria me esperando do outro lado, mas eu tinha alguma esperança de estar acordada de verdade. Respirei fundo e contei até três antes de abrir a janela, e, do outro lado da tela, Vicente miava baixinho, encarapitado num galho de árvore. Soltei a tela em uma das pontas e acolhi o bicho, meio sem saber o que estava fazendo. Se meu pai me pegasse com ele ali, não ia ter “ele me seguiu até em casa, posso ficar com ele?” certo, que esse não é o tipo de papo que cola cinco vezes. Mas essa noite eu não ia deixar o bichinho dormindo na rua. Fechei a janela de volta, avisei aos filhotes que era para fazerem silêncio e desci pra buscar comida, tanto pra eles quanto pra mim.

Era uma hora um tanto incomum pra se pegar comida de gato na cozinha, então era importante que eu fizesse o mínimo de barulho possível para que meu pai não percebesse que eu estava por ali. Tudo bem que ele, minha madrasta e meus avós deveriam estar no décimo sono, mas velho tem tudo sono leve e meu avô andava com a mania de acordar no meio da madrugada pra ir ao banheiro. Desci as escadas e entrei na cozinha na ponta dos pés. Abri as portas dos armários devagarzinho, com medo de fazer barulho, mas não encontrava a ração em canto nenhum. Encontrei uns biscoitos muito esquisitos, botei alguns em um prato pra mim, peguei um pouco de carne moída crua e sem tempero na geladeira pro gato e comecei a subir de volta, quando vi uma sombra larga e muito alta se mexendo no corredor lá em cima. Só podia ser meu pai. Entoquei a carne atrás de um vaso de plantas (aliás, o que um vaso de plantas estava fazendo no meio da escada?) e continuei subindo devagar, matutando uma desculpa qualquer pra estar comendo biscoitos as três e meia da manhã, quando vi Vicente andando tranquilamente. No teto. Não fazia o menor sentido, mas fiquei mais preocupada em chamar a atenção dele pra ele se esconder do que com o fato de que as leis da gravidade aparentemente foram revogadas por algum juiz meio maluco. Mas nessa justa hora o gato resolveu começar a miar. Ouvi barulhos de passos ecoando ao meu redor, e aquela escada parecia nunca mais ter fim. Comecei a correr, agora verdadeiramente assustada, mas a porta do meu quarto não aparecia de jeito nenhum. E o gato miando, no teto, nas paredes, por todos os lugares.

Abri os olhos. Demorei para reconhecer meu quarto de verdade. Os miados continuavam. Abri a porta e deixei Edgar, o único gato da casa, entrar e se alojar na minha cama, enquanto eu me arrumava para ir trabalhar. Definitivamente, amanhã não vou dormir com carta de tarô nenhuma debaixo do travesseiro.

3.10.11

Dia 03: A Imperatriz

Fazia tempo que eu não via Regina. Até me sentia meio mal por isso, porque sempre fomos muito próximas, mas a correria da vida fez com que simplesmente sumíssemos uma da vida da outra. Por outro lado, desde que nosso relacionamento terminou que as coisas às vezes ficavam meio tensas quando nos encontrávamos pessoalmente, e com o tempo nem pela internet nos procurávamos mais.  Fomos desaparecendo uma da outra, até que se passaram bem alguns anos sem notícias.

Por isso tomei um susto quando recebi uma ligação desesperada do Alex dizendo pra eu ir pro hospital porque ela precisava da minha ajuda. Por mais distantes que estivéssemos, eu nunca negaria ajuda a alguém que já amei tanto, então peguei correndo a bolsa e fui.

Encontrei os dois na porta. Alex parecia fisicamente bem, mas a cara dele estava desesperadora. Mais desesperadora ainda era o quadro como um todo: Regina estava deitada numa maca, a barriga quase explodindo de gravidez. Eu não sabia como reagir àquilo. Parecia uma gata prenha de uma dúzia, enorme, redonda, a cintura bem marcada que eu tanto amava completamente deformada, as pernas delicadas incapazes de sustentar o peso do corpo.

O que mais me confundia, na verdade, era a gravidez por si só. Regina nunca gostou de homens na vida – se autodefinia como uma estrela dourada, termo corrente pra lésbicas “com selo de garantia”, e, pelo menos quando estávamos juntas, dizia que se quiséssemos mesmo ter Olga e Catarina, eu é quem teria que abrir mão das minhas formas pra fazer inseminação, porque se recusava terminantemente a engravidar, ficaria ridícula masculina como era, etc. Naquele momento, masculina seria a última palavra que eu usaria para defini-la. Os cabelos mais compridos do que eu jamais vira – a franja chegava na linha do queixo – e uma aparência geral de fragilidade e sofrimento impossível de definir com palavras conferiam ao quadro um langor insuportavelmente delicado. Passei alguns instantes de choque observando a cena antes de conseguir abrir a boca pra falar o que quer que fosse.

– Como foi que isso aconteceu?
– Não sei! – me respondeu, a voz sufocada. Parecia doer até para respirar.
– Como, não sabe?
– Um belo dia, minha menstruação não veio. Depois de um mês assim, fui no médico e ele me deu as “boas novas”. Não lembro de ter ido pra cama com homem nenhum. Não lembro de ter injetado porra nenhuma no útero. Não lembro de nada.

Um espasmo mais forte de dor fez com que o rosto de Regina se distorcesse de uma forma que partiu meu coração. Tava na hora de fazer alguma coisa. Peguei a maca e corri com ela hospital adentro, vagamente notando no caminho que Alex havia desaparecido, possivelmente para fumar. Corremos por corredores brancos, através de portas brancas, era tudo muito branco, eu já nem sabia mais onde estava. Até que ouvi Regina gritando.

– Chega, Lili! Chega! Tá na hora! Você vai ter que resolver isso!

Nunca fiz um parto na minha vida, mas era bem familiarizada com a parte da anatomia de Regina que eu teria que encarar agora. Nem nos meus sonhos mais loucos imaginei trazer ao mundo o filho da minha ex namorada, mas pelo visto era o dia internacional do surrealismo, então não demorei muito pra me preparar psicologicamente. Me coloquei de frente para as pernas arqueadas da pobrezinha, separei seus joelhos e, sem me preocupar com água quente ou toalhas brancas, pedi que ela empurrasse.

Regina não precisou fazer muito esforço. O que quer que fosse aquilo saindo de dentro dela queria tanto sair quanto ela queria se livrar da dor. A criatura rastejou para fora dela, garras rasgando a carne e ensopando a confusão de panos brancos de sangue vermelho escuro, depois rosado, depois só água. Rastejou e rastejou, até se aninhar no topo da barriga da mãe. Não era uma criança. Não sei descrever aquilo; parecia um alienígena, um pokémon, um demônio, sei lá o que diabo era. Parecia feito puramente de carne e osso, sem pele, sem pelos, sem nada que o identificasse como um ser vivo exceto os olhos, muito negros, muito brilhantes. A porra da criatura era rosa, aquele rosa-carne de pele leitosa suja de sangue, parecia mesmo que era isso porque era um rosa meio raiado de branco, e me olhou tristemente por alguns segundos antes de parar de se mexer. Morreu ali, ainda sobre o ventre de Regina, o cordão umbilical enorme ainda preso à hospedeira. Entrei em pânico. Não queria que Regina visse aquilo, mas era tarde demais. Ela estava em choque, não conseguia falar, os olhos arregalados presos naquele pedaço de pesadelo.

–  Rê, você tá bem?

Silêncio.

– Rê, fala comigo! Rê, me escuta, nada disso é real, tá? Isso é um pesadelo. Uma porra dum pesadelo absurdo e assustador, mas ainda assim um pesadelo. Olha pra mim, Rê!

Mas ela não me respondia. Os olhos vidrados, a boca entreaberta, e eu podia jurar que ela não estava respirando. Tornei a correr pelos corredores, empurrando a maca em busca de um médico, um curandeiro, alguém que pudesse socorrer minha amiga. Não pode acabar assim, não podia deixar ela morrer. Corri feito louca, e parecia presa no tempo. As portas abertas, os corredores desertos, Jesus, onde foi que a gente veio parar?

Dei com uma porta fechada. Chutei com toda a força que minhas pernas bambas de terror permitiam e puxei a maca na direção dela. Uma luz muito forte me ofuscou. Um barulho vagamente eletrônico disparou em meus ouvidos, e, atordoada, consegui abri os olhos.

O celular marcava seis horas da manhã e o alarme era insuportavelmente irritante. Esfreguei os olhos e tirei a carta de tarô de debaixo do travesseiro. A Imperatriz me encarava com seus olhos tranquilos. Esfreguei os meus e fui cuidar da minha vida.

2.10.11

Dia 02: A Sacerdotisa

Do cantinho do mundo em que eu me encontrava, sabia que nada poderia me atingir. Me reservo o direito de não fazer nada. Do meu canto, do meu refúgio, vejo o mundo. Vejo tudo, observo tudo, sem pressa nem vontade. Vi minha vida se desenrolando diante dos meus olhos, com a paciência que só quem se sabe por ora impotente conhece a fundo. Vi os caminhos que se abrem à minha frente e calculei o próximo passo com cuidado. Eu vi o futuro. E só depois de decidir o que quero me dei ao trabalho de levantar do meu trono, depor as religiões e tocar a vida.

1.10.11

Dia 01: O Mago

Olhei pra cima e vi um universo inteiro de possibilidades. Olhei pra baixo e encontrei meus pés descalços contra o chão de terra batida, os grãozinhos entrelaçando-se com meus dedos e dando aquela sensação gostosa de fazer parte de alguma coisa maior. Suspendi de leve a túnica clara, tão leve, que usava. Organizei meus materiais e me pus a trabalhar. Não sei bem o que pretendia fazer, mas sabia que tinha que fazer alguma coisa. Algo precisava ser mudado, transformado, transmutado. A mudança tem que vir de dentro pra fora, algo me dizia. Mudei. Mudei meu jeito de encarar a vida, de pensar, até mesmo meus ideais que eu julgava me definirem. Mudei tudo, para poder mudar o mundo. E só então consegui fazer alguma coisa. Mergulhei de corpo e alma no trabalho, e, quando por fim pude dá-lo como encerrado, me satisfiz. Despi minhas roupas de transição e voltei pra casa, os dedos tintos de mercúrio e destino. O mundo voltou a seu eixo, como sempre há de voltar.