31.7.09

Carta

Peço desculpas ao meu pai, por não ser a filha perfeita que sempre esperou que eu fosse. Peço desculpas por todas as decepções, as mágoas, os mal entendidos, os segredos que guardei e os pedaços de mim que compartilhei.
Ao meu melhor amigo, pelas promessas não cumpridas, pelos egoísmos, pelas falhas que não consegui disfarçar mesmo quando por perto. Por todas as vezes em que magoei sem querer, ou que achei que, de alguma forma, meus sentimentos seriam mais importantes.
Aos meu filhos, por não ter sido uma mãe de quem pudessem se orgulhar. Pelo descaso, pelo sufocamento, por exigir a presença quando me sinto só e afastar quando prefiro a solidão.
Aos que me amaram, por não ter correspondido tal amor à altura.
Ao meu amor.
Por jamais ter conseguido, por mais que tentasse, te odiar mais do que te amei.

30.7.09

Vinho

Quero me embriagar para esquecer os amores, as dores, os desamores. Os prazeres a que me permiti e as lágrimas que derramei. Um porre para esquecer seu nome, endereço e todas as marcas tão suas que você deixou em mim e que agora fazem parte de mim. Que eu me esqueça, me transforme, me dilua, e me perca em mim mesma. Porque não me acho mais desde que perdi de você, e nunca mais encontrei o caminho de volta. Um pássaro desgarrado, que se perdeu do ninho, fugiu da gaiola. Quero voltar para casa, mas não sei como. E prefiro o silêncio do esquecimento aos gritos da ignorância, que teima em gritar seu nome em desespero. Garçom, por favor, mais uma.

29.7.09

Errata

Onde foi dito "não te perdôo", entenda-se "a culpa é minha".
Onde lê-se "vou embora", leia-se "não me deixe".
Onde houve "desisto", entenda-se "por favor, diga que quer voltar".
Substitua o "vou me afastar" por "me abrace e diga que está tudo bem".

Quisera eu fosse tão fácil corrigir as falhas passadas, presentes e futuras
Como se foram apenas erratas num jornaleco de esquina.
Uma borracha, um corretivo, uma nota de escusas
Uma legenda qualquer...

Mas nesta comédia de erros
Sempre fica o dito pelo não dito
E quando as contas são postas no papel, fica claro:
Quem mais errou fui eu.

13.7.09

Papo de ônibus I

- Você é religiosa?
- Não, por quê?
- Porque você tem cara de mórmon.
- Ufa, por alguns instantes achei que você fosse tentar me converter.
- Não, eu desisti de igreja. Muita falcatrua. Então, você é ou não é?
- O quê?
- Mórmon, ué.
- Ah. Não.
- É que você tem cara de...
- Americana?
- É.
- Não, não sou.
- Ah.
- Por que largou a igreja?
- Acho que todo mundo respira o mesmo ar, então é ridículo temer o inferno. Todo mundo menos eu, claro.
- Como assim?
- Eu roubo o ar alheio. Quer ir à praia comigo qualquer dia?

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8.7.09

Uma questão de destino

Fionn-Briana: Oi.
AnnaKarenina: Já vou avisando que detesto caçadoras.
Fionn-Briana: Como assim, caçadoras?
AnnaKarenina: Essas meninas que chegam aqui largando um monte de cantada de caminhoneiro. Salas de bate-papo lésbicas são suficientemente insuportáveis sem esse tipo de coisa.
Fionn-Briana: Entendo o que quer dizer. Também odeio esses lugares.
AnnaKarenina: Por que está aqui, então?
Fionn-Briana: Minha namorada me deu um pé, e uma amiga hétero me convenceu de que talvez fosse uma boa idéia procurar pessoas novas.
AnnaKarenina: Temos a mesma história. Por que terminaram?
Fionn-Briana: Eu fui uma insensível, e não consegui compreender o jeito dela demonstrar que me amava. E ela era meio problemática demais. Vocês?
AnnaKarenina: A mesma coisa. Só que ela também foi meio insensível. E talvez eu também seja meio problemática.
Fionn-Briana: Quantos anos você tem?
AnnaKarenina: O que isso importa? Minha idade ou meu nome não me definem. Gostei de você. Quero conhecer sua alma primeiro, deixa esses detalhes superficiais para depois.
Fionn-Briana: Tudo bem. Podemos, pelo menos, sair deste chat? Já que nós duas odiamos este ambiente?
AnnaKarenina: Pode ser. Qual seu MSN?
Fionn-Briana: É meuapelido@meuservidor.com.
AnnaKarenina: Não acredito. Thais?
Fionn-Briana: Elisa?
AnnaKarenina: Típico. Tanta mulher nesse chat e a única que eu acho interessante é minha ex.
Fionn-Briana: Até que faz sentido, já que, aparentemente, nós ainda não nos superamos.
AnnaKarenina: Talvez você tenha razão. Quer sair para tomar um sorvete e tentar passar a limpo essa nossa história?
Fionn-Briana: Será que devemos?
AnnaKarenina: Bom, pra nós duas nos encontrarmos numa sala de bate-papo depois de tanto tempo, sendo que as duas odeiam esse tipo de coisa... Só pode ser destino. E aí, topa?
Fionn-Briana: Pode ser. Por que não?
AnnaKarenina: Passo aí em uma hora.


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Pesadelos

Houve uma época em que o amor foi forte e verdadeiro. Quero acreditar que não estou louca, e que realmente existiu um tempo em que simplesmente estarmos juntas foi o suficiente para nos deixar felizes, quando nada era mais importante que a companhia uma da outra. E hoje me pego a te observar dormindo, como um anjo, a cabeça descabelada pousada no meu travesseiro desfeito, enquanto fico aqui, me lamentando por continuar a forçar minha presença na tua atarefada existência. E sonho desperta com passados longínquos e futuros que se afastam cada vez mais nas brumas dos territórios das probabilidades, tão distantes que minhas tímidas asas de borboleta apaixonada em breve perderão a capacidade de alcançar.

Tu acordas, princesa do meu conto de fadas particular, e me olhas séria, limpando a saliva coagulada do canto dos lábios e as areias de Morfeu dos olhos. Me pergunta o que há, e te respondo:

- Nada, anjo meu. Só um sonho ruim que há de passar...


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7.7.09

Solidão II

Do lado de cá do mundo, tudo parece bem mais cinzento sem você. O frio não me arrepia, o sol forte não me incomoda, e mesmo o martelar insistente das gotas de chuva no telhado não me provoca qualquer reação.

Minha cama tem espinhos e o ar é feito de concreto, e o tempo fez-se estátua. Nele, só há movimento quando você está por perto, muito mais veloz que deveria.

Aprendi todas as línguas que podia, incluindo a língua do teu corpo, na qual sou fluente. Mas não consegui apreender sequer os rudimentos da língua do teu coração. E, por mais que eu te implore, você não quer que eu aprenda, e é como se eu tivesse esquecido todo o resto.

Das manhas e mimos quando ao teu lado, me tornei um bebê também na minha quase-vida fora de você, e me vejo insegura e desprotegida e chorando aos berros pelos cantos, carentea do amor que sentia nos teus braços e já não mais.

E os grilhões me querem lembrar que sou eternamente culpada por ter assassinado a única coisa de preciosa que me tinha restado, e seus olhos me recriminam por isso como se meramente refletissem os meus, o meu arrependimento, a minha dor.

E você diz que me ama e finge não sentir as lágrimas que turvam sua visão, e vira as costas e me deixa aqui, a ser varrida pelo vento junto com as folhas, os panfletos e a poeira. E viro memória, e desapareço junto com os demais fantasmas da sua vida, a ser apagada pelo tempo.


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Solidão I

Sua ausência é uma presença incômoda, insistindo em me fazer lembrar da sua partida.

Você partiu sem se despedir, sem olhar para trás uma vez que fosse, e me deixou aqui. Com sonhos sólidos demais para serem reais e uma realidade frágil demais para ser vivida, uma bagagem tão ínfima que pesa sobre meus ombros. Seu amor era o chão que me sustentava, e o abandono distorceu minhas percepções. Quantas eternidades se passaram desde a última vez em que nossos lãbios se tocaram? Parecem segundos, parecem vidas, parece ter sido em outra encarnação.

Só quem já esteve na beira do abismo e teve a coragem de dar uma boa olhada para baixo conhece a sensação de ver a morte se aproximando, a sensação de impotência perante o inevitável. E eu vi o inevitável, e ainda assim lutei. Em vão. E agora os nós de meus dedos sangram de tanto socar a parede que se ergueu entre nós, meu peito dói de tanto gritar seu nome no silêncio da noite, minha boca está seca de procurar a sua e só encontrar o vento do deserto que se formou no lugar do jardim florido que criamos juntas. As lágrimas se tornaram rios, que formaram cachoeiras, que desaguam em um oceano sobre minhas faces erodidas, e eu não sei nadar, e fico esperando você me lançar um bote salvador, e me afogo em mim mesma.

Você me levou ao inferno de Dante, e eu fico aqui esperando que você também seja meu Virgílio, que me guiará por todos os nove círculos, e através do purgatório, até que eu ascenda e encontre você, também minha Beatrice. Por você abandonei a esperança, esperançosa de te encontrar no final da jornada.

E ainda assim, você não está aqui. E o vazio no meu peito vai devorando o que restou, e não adianta eu dar a você, princesa das minhas histórias, um nome de minha autoria. O nada continuará a consumir tudo até que você renasça em mim. Ou sou eu que devo renascer em você? Talvez nós duas precisemos renascer juntas, e reinventar o mundo ao nosso redor, você me reinventando e eu reinventando você.

Ou talvez só me reste a mais impossível de todas as tarefas, que é aceitar a destruição de tudo que me era mais sagrado. Aceitar sua morte em mim, sem esperar por seu renascimento, e conviver com essa úlcera se alastrando pelo meu organismo. Compreender que o deus se foi e me preparar para o inverno sem fim à minha frente, mesmo que a neve que se espalha me lembre você.

E o vento continua a soprar, impune, pela aridez que sou eu sem você, até que as areias soterrem o que já existiu.


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6.7.09

A princesinha do lotação

A pequena princesinha subiu apressada em seu ônibus-coche de faz-de-conta e, por trás da máscara, piscou seus olhinhos curiosos. Olhou para seus súditos-passageiros e pareceu dar-se conta, de estalo, que não cabia bem a uma princesa mostrar-se amarrotada como estava. Alisou as pregas da saia muito colorida, ajeitou os longos cabelos de rapunzel-sem-trança, cruzou as mãozinhas minúsculas e delicadas sobre os joelhos e sorriu um sorriso de mil sóis. Ou antes, vinte e outo sóis, perfeitamente brancos. E assim ficou, infante com ares de grande dama, sentada comportadamente até sua mãe pagar a passagem ao cobrador.


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Metalinguagem

A verdade, a mais absoluta e triste das verdades, é que qualquer ilustre desconhecido, contanto que alfabetizado, pode ser um cronista. Mas daí a escrever bem, daí a ser um bom cronista, é uma história completamente diferente.

Este é um fato que admiti após intensa repetição de professores e autores: qualquer um que se dispuser à prática de tão ingrato ofício pode ser, e muito provavelmente de fato será, um escritor. E, ainda assim, apenas alguns poucos, uma seleta elite, tem a oportunidade de fazê-lo profissionalmente.

É o tal do talento, ainda que cursos e mais cursos de formação de escritores insistam em tentar nos convencer de que escritaliterária é muito mais esforço que o dom propriamente dito. É a única explicação, salvo a posse da mais preciosa ferramenta do meio: um padrinho influente.

E se esta pseudo-crônica parece carregada com uma sutil subnota de amargura, é porque careço deste último. Mas isto não vem ao caso.

Se qualquer um, sucesso ou fracasso à parte, pode ser um cronista, o que, afinal, constitui uma crônica? O que pode ser um tema para uma crônica? Um trocadilho pode formar uma crônica?

Quero crer, e apoio minha fé nas palavras e escritos de meus mestres, que mesmo o singelo ato de escrever uma crônica pode render um texto razoavelmente decente. E, sendo assim, definimos que qualquer coisa é um tema, o que combina perfeitamente com o espírito de liberdade de que a crônica nos imbui. Mesmo o nada pode gerar algo, como as últimas linhas nos vêm mostrar.

E assim, por falta do que mais dizer, encerro este arremedo de crônica repleta de metalinguagem à melhor maneira machadiana:

Boas noites.


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