19.1.11

Carlos

A primeira memória que tenho do Carlos é de chegar à noite na casa de Iguaba com meus pais, e ele estar sentado no sofá da sala assistindo televisão. Era uma televisão bem velha, mesmo pra época - devia ser o começo dos anos 90 -, daquelas que você precisava girar o botão seletor pra mudar de canal. Ele estava sentado com um short meio encardido de algodão, a barriga bastante protuberante, meio confortável demais pra quem ia receber visitas. Minha mãe disse a ele, "olha, a Aline terminou o Jardim!" Eu esperei um "parabéns", ou algo assim. Em vão, claro. Tudo o que ele me disse em resposta foi, "e não me traz nenhuma flor pra mostrar?"

Lembro de Carlos indo nos visitar no apartamento em Vila Isabel. Nem vou entrar no mérito da questão de lembrar claramente da jaqueta impermeável vermelha que ele usava - ele esqueceu a bendita jaqueta lá em casa, e alguns anos depois me apossei dela "porque parece a jaqueta do Kaneda". Um dia, tentei devolver a ele, e ele recusou. Disse que ficava bem melhor em mim do que jamais havia ficado nele.

Lembro das histórias absurdas que o Carlos costumava contar. Sobre dividir um trailer em Miami com duas putas cubanas. Sobre o gerente de banco nos EUA que cumprimentava os clientes brasileiros acenando alegremente, "please, between." Sobre os lovebirds que entravam no motor dos carros. Sobre como os companheiros de trabalho dele não conseguiam pronunciar "Souza" direito.

Lembro dele indo me levar no colégio todo dia de manhã quando éramos vizinhos. De como a cada dia ele me cumprimentava em uma língua diferente, e eu tinha que saber responder. De como isso me influenciou a querer aprender várias, diversas línguas. Lembro dele me esperando na porta da escola, comendo um pastel de carne na tia que vendia lanche e contando seus muitos causos pros meus colegas mais novos, que o adoravam. Lembro de seu Supermini vermelho caindo aos pedaços. Lembro dele me chamando de gótica - por causa das roupas pretas e muitos acessórios prateados - e de comunista - por causa do cabelo vermelho - e se acabando de rir em todas as vezes que me tratava assim. Das frutas frescas e milhos verdes que me levava às tardes. Do arroz que ele pegava na minha panela por preguiça de fazer o próprio. De me ensinar a fazer amizade com os cães de guarda, a ponto de eles se tornarem meus inseparáveis no ano em que fiquei por lá.

Lembro da última vez em que o vi. Dois dias antes, ele estava no hospital. "Acho que, desta, eu não passo, perua", ele me disse. "Vaso ruim não quebra, velho safado. Daqui que eu volte pra Salvador você já vai estar em casa", disse eu. Ele riu, disse que achava difícil, mas dito e feito. Dois dias depois, já estava em casa e dirigindo. Me despedi dele dizendo que era bom que ele durasse até o natal, que quando eu voltasse queria vê-lo bem.

E passou o natal, e eu não consegui ir vê-lo. Não consegui cumprir minha parte do acordo. Ele cumpriu, mas não pôde se aguentar até que eu fosse capaz de ir visitá-lo. E eu nem posso culpá-lo. Acho que exigi demais...

Carlos Eugênio Ferreira de Souza. Meu avô. Um belo de um filho da puta, dado a heresias e completamente tarado, daqueles que moram pra sempre no coração da gente. Nem vou ousar dizer "que deus o tenha", porque pra ele isso era ofensa, que deus não existe e que fodam-se esses retardados que acham que tudo é culpa de um deus inexistente. Não acho que ele se ofenda, no entanto, se eu disser que espero que ele esteja no melhor lugar em que puder estar. E que espero reencontrá-lo algum dia, e sentar e relembrar as mesmas histórias que ele insistia em repetir quinhentas vezes.

E, até lá, só resta a saudade. E as lágrimas que ainda não consegui chorar, por ainda estar em choque com a notícia de sua morte, tão recente, tão esperada, tão surpreendente. Descansa em paz, vô.

18.1.11

Invasões Bárbaras

Não quero confundir e amalgamar nossas identidades
A mim me basta que nos identifiquemos
Não quero ser o país exótico a ser conquistado
Nem tampouco que teu império me absorva e domine
Não quero o pedestal dos deuses distantes
Nem o drama shakespeariano correndo nas veias.
Tampouco quero o comum tedioso;
Me satisfaz a calmaria do beijo que nunca recebi.

16.1.11

Tio

Um dia morno. Ela gastou uns cinco minutos rabiscando em seu diário mental, mas não conseguiu encontrar nenhuma outra palavra: morno definia. Não só o seu dia, como toda a sua existência. Correu os dedos pelas teclas do velho teclado de oito escalas, sem muita vontade de voltar a praticar. Correu os olhos pelas estantes, sem nenhuma vontade de sentar na poltrona de forro de veludo rasgado para ler algum livro. Suspirou fundo, desligou o aparelho de som e apoiou os cotovelos no parapeito da janela fechada. A chuva forte lambia os vidros da janela, e a cidade muito cinza lá embaixo brilhava em mil pontinhos, os faróis dos carros e as luzes dos postes parecendo difusas no vapor que subia do asfalto quente. Correu as persianas azuis com estrelinhas, e riu-se por um meio segundo da ironia que representava ter uma coisa tão tranquila dentro do próprio quarto quando sua mente e seu coração pareciam os escombros de um terremoto. Sentou-se na beirada do sofá que fazia as vezes de cama e ajeitou o travesseiro, com o cuidado de não mexer no cutelo afiado que repousava por baixo deste. Apagou a luz, finalmente, e deitou-se sem se despir. Essa era a noite. Degustou o sabor antecipado de vingança e fechou os olhos. Se aquele filho da puta entrasse em seu quarto de novo, o hálito alcoolizado e os passos desajeitados rumo a sua cama, não hesitaria. Nunca mais.

15.1.11

Surdez Seletiva I

- Tô ouvindo Radiohead, e isso me faz querer morrer.
- Isso não é informação demais pra um primeiro mês de namoro?
- Como assim, amor?
- Espera, o que você disse?
- Que estou ouvindo Radiohead... a banda, sabe? Que é tão downers que me faz sentir vontade de morrer.
- Ah, Radiohead! Ufa! Que bom!
- Bom? O que foi que você tinha ouvido antes?
- Que você estava com diarréia e isso te fazia querer morrer.

14.1.11

Gelo

- Suas unhas estão lindas hoje.

Porra, pensei. De novo esse papo, cara? Balancei a cabeça pros lados quase que imperceptivelmente, de incredulidade. Ele aparentemente não percebeu, mesmo. Resolvi mudar a tática.

- Obrigada. É pra combinar com a camisa.
- Não, não é. Você está com esse esmalte desde segunda-feira, e só vestiu verde hoje.
- Ah, quer dizer que você reparou?
- Sempre reparo. Foi assim que você me queixou, lembra?
- Lembro, claro.

Claro que lembro. E não foi assim. E não fui eu quem te queixou. Mas guardei essas informações pra mim. Vai que era um teste? Vai que ele queria saber se me marcou de alguma forma?

- Então... você sumiu.
- Te vejo aqui todos os dias.
- Não, eu quis dizer... da minha vida pessoal.
- É, isso é.
- E o namorado?
- Tá lá, no Rio. Ainda não o conheço pessoalmente.

Gastei alguns segundos rindo internamente da expressão de choque no rosto dele.

- E foi por um cara que você nem conhece pessoalmente que você me trocou?
- É. Pelo menos ele se importa com certos detalhes.

Apaguei meu cigarro na sola das sandálias e joguei na lixeira mais próxima. Me preparava para voltar ao trabalho, quando ele me puxou pelo braço.

- Ei... Vai fazer o que hoje à noite?
- Falar com meu namorado.
- Certo, certo, seu namorado... e depois disso?
- Dormir.
- Com alguém?
- Não.
- Posso me candidatar?
- Não.

Entrei no prédio e movi minhas coisas para a carteira mais distante possível da dele, na esperança de conseguir me esquivar dos olhares carregados de significado, para que ele não visse os meus vazios de interesse. Ao final do dia, me recusei a esperar. Ele que espere. Pro resto da vida, se assim o desejar.

A primeira vez

Quando ele sussurrou no meu ouvido, "vamos sair daqui e ir para algum lugar mais privado", eu queria morrer de tanto rir. Era uma coisa tão clichê que eu nem conseguia acreditar nos meus ouvidos, mas pelo menos alguma coisa nessa nossa história tão incomum precisava cair num clichê. E ele me olhava com olhos esperançosos, louco para ouvir uma resposta minha, e tudo o que consegui dizer sem cair na gargalhada foi "nunca fui a um motel, meio que fere meus princípios". Mas se tinha um cara no mundo que conseguiria me convencer a ignorar qualquer princípio referente a sexo que eu pudesse ter, era ele. E não precisou de mais que uns cinco minutos de insistência para que eu mandasse às favas meu pudor e concordasse. Segundos depois, meu melhor amigo voltou pra mesa, e, ao nos ver aos beijos, resmungou "get a room". Agora sim, todo o riso sem graça que eu tinha segurado antes explodiu, com o riso dele fazendo coro. Ficou óbvio que ele acertara na mosca, especialmente porque meu rosto estava da cor dos cabelos. Pagamos a conta, o amigo foi para casa e ficamos nós, dois eternos adolescentes perdidos na Augusta em pleno momento crítico de nostalgia. Entramos no primeiro motel que vimos pela frente, e eu simplesmente não conseguia parar de rir. O homem da recepção entregou uma ficha e pediu para que ele preenchesse. Eu já chorava, os músculos do rosto doendo de tanto rir, enquanto eu o via preencher o papelzinho. "Nome do pai: El Matador", "Nome da mãe: Mamma C.", e eu me perguntando que diabo de motel era aquele que fazia questão de tantas informações na hora de fornecer um quarto. Quando chegou em "profissão", precisei sair de perto. "Super herói ;D", ele preencheu alegremente, e eu querendo morrer. Entregou a ficha, pagou adiantado e subimos, já tirando parte da roupa no caminho até o quarto. Uma vez a portas fechadas, as bocas não se soltavam e as mãos não cessavam de abrir desajeitadamente botões e arrebentar pulseiras e lutar com o fecho do sutiã que era ligeiramente mais complicado do que ele esperava. As calças já se arrastavam pelo chão, presas apenas pelos sapatos que, na pressa, esquecêramos de tirar, quando o telefone tocou. Ele atendeu. "É, sou super herói. É minha profissão, cara. Porra, eu tô dormindo, amanhã eu preencho essa bosta direito. Sou designer, caralho. Tá." Ele puto, e eu gargalhando tanto que quase me esqueci do que me motivara a ir até ali. Ficou no quase. Ele não me deixou esquecer.

11.1.11

Realidade 2.0

Não, aqui não. Pare de dizer essas coisas. Eu fico pensando nisso tudo e... olha aí! Viu o que aconteceu? Vê como eu fico? E ainda leva horas até eu poder me acalmar. É tudo culpa sua. Não, pare de me mandar mensagens. Estou no ônibus. Estou desconfortável. Estou doida pra chegar em casa logo e tirar essas roupas molhadas. Pare de brincar comigo desse jeito. Assim eu não vou aguentar tanto tempo. E olha que esse tempo já parece que vai demorar uma vida pra passar.

10.1.11

T Revisited

Te defendi contra tudo e todos
E te acolhi na hora de necessidade
Confiei a teus ouvidos meus problemas
E a teus ombros, minhas lágrimas
Fui cúmplice em teus pecados
Parceira nas noites de farra
Amiga quando nada mais te restava.

Sequei teu choro
Afaguei teus cachos
Penetrei tuas intimidades
Compartilhei teus sonhos
Guardei teus segredos

E de tanto amor que sentia
Relevei tuas falhas,
Por tantas que fossem.

Te amei demais, pequena.
Como irmã ou como amante, já nem sei.
E em troca, a punhalada mais funda.

Te extirparia da minha vida se pudesse, como o câncer que você se tornou.

9.1.11

Fim de ciclo

Te cortei da minha vida. Cortei, porque não fazia mais o menor sentido manter esse elo tão frágil com o passado. Cortei sem dó, porque pra mim você apenas representava mais uma entre tantas pessoas com quem eu não tinha a menor intenção de falar. Cortei porque não queria que você continuasse ali, relembrando os fatos vergonhosos do meu passado, simplesmente porque existe. Porque você faz parte desse passado vergonhoso, e seu comportamento e suas atitudes me dizem que você estagnou no tempo. Eu cresci, e todas as pessoas que conheço que te conheciam também cresceram. Você não, você insiste em se comportar da mesma forma que aos 18, que era a mesma forma com que se comportava aos 16. São quase 10 anos de mesmice, de infantilidade, de imaturidade, de se-achismo. Te cortei, enfim, porque cansei. Cansei de lidar com as tantas vezes em que me cortei pra tentar lidar com a dor. Cansei de lidar com você esfregando no meu nariz os erros todos que cometi, e espalhando pro mundo as tantas coisas que confiei a você. Cansei de chamar "amigo" a quem tanto me magoou, tantas e repetidas vezes. Cansei, enfim, de você e de tudo o que representa. Tenha uma boa vida. Tenho certeza de que a minha só tem a melhorar agora.

8.1.11

Futuro

Eu não quero você na minha cama uma vez ou duas e nunca mais.
Eu quero você na minha cama, no meu coração e na minha vida.
Eu quero você pra acordar do meu lado
E rir da espinha nova que nasceu no meu nariz.
Eu quero você pra tomar banho comigo e me ajudar a esfregar minhas costas
porque eu nunca alcanço e sempre fico revoltada quando você fala nisso.
Eu quero você pra comer da comida que eu faço e reclamar que está salgada demais,
Que não podemos descuidar da pressão e que, desse jeito, vou acabar nos matando.
Eu quero você pra reclamar que trabalho demais e tenho tempo de menos pra você,
Que moramos na mesma casa e nunca nos vemos o bastante.
Eu quero você pra reclamar que uso saias curtas demais.
Eu quero você pra reclamar que sou romântica demais
E que preciso botar meus pés no chão de vez em quando.
Eu quero você pra me dizer não o que quero ouvir, mas o que preciso ouvir,
E pra dizer que estou gorda demais ou magra demais
Ou que estou bebendo demais, ou que, por favor, pare de fumar, vamos ter um filho.
Porque eu quero que você seja o pai da minha filha
E discuta comigo porque não acha Catarina um nome bonito
E fique sem argumentos quando eu explicar porque quero ter uma filha chamada Catarina
E como diabos isso seria uma homenagem ao meu pai
Eu quero que você olhe nos meus olhos e diga 
"Não, ainda não é hora de você ir fazer seu doutorado,
E não importa o quanto Oxford é bonita nessa época do ano.
I'm still working, and I'm not gonna let you go alone."
Eu quero envelhecer ao seu lado.
E o tempo vai passar e eu quero continuar querendo isso.
Eu quero, acima de tudo, poder olhar nos seus olhos
Independente do quando
E sentir que nunca deixamos de ser o que somos hoje:
Dois pós-adolescentes encarando o resto de nossas vidas.

6.1.11

Noite em claro

O dia passa como se fosse num sonho. Ando e ando, mas não sinto o chão - não sinto o peso nas pernas, não sinto as horas passarem. Há momentos em que passam num piscar de olhos; em outros, arrastam-se demoradamente, saboreando cada segundo. Quanto tempo faz que almocei? E que jantei? Há quantas horas me deitei pela última vez? Nem percebi o sol se escondendo, até que fosse tarde demais para dizer adeus.

A casa ainda vazia parece imensa, e os passos que não estão aqui ecoam na minha memória. Ainda era claro quando olhei pela janela, mas me banhei à luz de velas por medo da escuridão. A vela continua acesa para que você não deixe de enxergar o caminho até meus sonhos, dessa vez reais, porque não despertos. Deito e fecho os olhos; assim sozinha, o amanhecer vai demorar demais para chegar.

Fogo e Água

Sou uma pessoa de dias cinzentos. De olhar a chuva pela janela ouvindo músicas tristes. Sou uma pessoa de abraços longos e olhares carregados de significado. De segurar a mão por horas a fio, sem dizer palavra. De preencher os silêncios com beijos longos e sem sentido, e depois sentar no canto da sala, encolhida, por medo de me movimentar demais e quebrar a barreira de sonho que se apossou da realidade depois do encontro dos lábios. Sou uma pessoa de chamas azuis, que parecem frias aos olhos mas queimam com o calor de mil estrelas ao toque.

Eu falo muito, é verdade, e falo mil coisas sem sentido e sem graça, e é difícil me fazer calar a boca. Mas não falo quando amo. Não falo quando estou perto de quem amo, porque tenho muito medo de abrir a boca e só conseguir falar do que sinto. Tenho medo de assustar, tenho medo de afastar, tenho medo do peso das palavras que podem sair de mim. Tenho medo de escorregar e cair no clichê e me tornar, da noite pro dia, desinteressante. Tenho medo, enfim, de perder.

E é assim que nos imagino: rindo como loucos falando besteira quando no momento de agir como amigos. E eu, silenciosa e com cara de deprimida, nos momentos em que te tenho só pra mim. E é aí que bate o medo de ser incompreendida. E é aí que bate o medo de ser fria demais. De te afastar por não saber demonstrar o que sinto, por não saber lidar com todo esse caos que só estar a sós com você me gera.

Não tem jeito. Não sei achar um ponto de equilíbrio.

5.1.11

Sexo, drogas e violência

Era uma janela do MSN. O amigo da voz doce de menino tímido e o amor conversavam, e o amigo afirmava que eu ia parar nos Trending Topics do twitter. O motivo? Eu estaria fazendo um tal treinamento de Ogunjá. O tal treinamento consistiria em eu definir quanto tempo de sono teria. No entanto, ia dar errado, porque eu tinha dito que só ia dormir por meia hora, e todo mundo sabe que eu não sou o tipo de pessoa que consegue cochilar por meia hora. Eu não ia sair da cama antes das dez. E o amigo dizia que isso era porque eu tinha caído enquanto pulava as sete ondas na praia, no ano novo.

Era o quarto onde eu morava na minha terra natal. Eu estava deitada, só de calcinha, em uma cama de casal, que era o único móvel claro do quarto. Todos os outros eram de madeira escura. De repente, o caso rompido entra pela porta do quarto sem maiores cerimônias. Me enrolei no lençol e lá fiquei, tentando convencê-lo de que não era uma boa idéia estarmos ali, sozinhos, os dois, eu seminua. Acabava por ceder. Nus de todo, agora, nos púnhamos a repetir o feito daquela manhã de quinta-feira. E aí a porta do quarto novamente se escancarava, e o irmão da minha chefe irrompia quarto a dentro, com um par de carregadores, e eles começavam a levar a mobília embora, exceto minha cama. E ficávamos lá, os dois, sem saber onde nos esconder. Depois, voltavam os carregadores, com moveis novos, de madeira clara, e muitas, muitas televisões. Contei cinco, espalhadas por toda a mobília, e aquilo me frustrava porque eu não tinha onde colocar o computador. Estava tudo tomado por televisões. Voltei para cama, incomodada, e ouvia a voz do irmão da chefe me dizendo que, além dos móveis, eles trouxeram também camarão empanado e outras bobagens para compensar o incômodo. O caso rompido, a essa altura usando um crucifixo de prata que me pertencia, perguntou displicentemente se tinha mais comida lá fora, porque ele estava com fome e de olho no camarão. Começou a comer e ficamos ali, na cama, comendo.

Era um quarto de paredes meio azuladas, com uma beliche encostada em uma parede e um pufe que parecia ser feito de saco de lixo encostado no canto. Estávamos jogando videogame, eu e meus colegas de trabalho, algum jogo de esportes. Então, um rapaz que era a cara do Chad Lindberg entrava, se jogava no pufe e arremessava para cada um de nós uma pistola branca, dizendo que eram controles especiais. Todos analisamos cuidadosamente nossos controles, até que uma das meninas, visivelmente drogada, enfiava o cano da pistola dentro das calças e dizia que havia um bicho lá dentro e que ela queria matá-lo. Puxou o gatilho. O sangue começou a manchar sua calça jeans clara e ela desmaiou sobre a cama. Tomei a arma da mão dela e comecei a tirar a munição, enquanto, desesperada, xingava o responsável por aquilo. As balas pareciam pilhas AAA. Eu tirava uma por uma do pente e gritava, "IT'S ALL YOUR FAULT". Mandava ele sumir com aquilo, mas só aí percebi que as armas estavam cheias de impressões digitais minhas. Me desesperei para tentar limpar, mas então a amiga acordou, disse que não se sentia muito bem e ia para casa esperar a onda passar.

O despertador tocou pela vigésima vez. Acordei.

Por que escrevo

E ela olha pras palavras na tela e desaba de chorar porque queria ter escrito algo assim, não porque é bonito, mas porque se sente da mesma forma e não saberia como expressar isso, tão dolorido, tão trancado dentro dela que estava. E ele olha pr'aquele texto imenso e não consegue conter um meio sorriso daqueles carregados de nostalgia, e não consegue impedir o coração de falhar aquela batida, porque está tudo ali, é a vida dele, com detalhes que ele nem lembrava que existiram, mas ah se existiram. E aí outra pessoa lê um poema tão, tão curtinho, e sente toda a carga de saudade do que ainda não existiu, e não resiste a se manifestar a respeito, porque sabe que aquilo ali é o que eu quero pro nosso futuro. E aí aquele amigo que entende tudo o que eu passei lê a carta e vem me dizer com todas as letras que ele gostaria de poder dizer tudo aquilo também pr'aquela pessoa mas não pode mais.

E essas coisas todas acontecem... espontaneamente. Essas palavras que brotam de mim e, de alguma forma, calam na alma de outras pessoas. Quando escrevo, parece que saio de mim. Parece que essas coisas não saem só de mim, são retalhos de tantas outras pessoas que eu nem sei mais. É por isso. É por isso que a pena será, eternamente, minha arma, e a folha, o escudo. É por isso que não desisto.

E isso tudo é pra agradecer a vocês que lêem isso aqui e, mesmo que não comentem aqui, vêm me dizer, por msn ou twitter ou seja lá como for, o que acharam, que se identificaram, que gostaram ou que se lembram. Vocês fazem parte disso aqui, de um jeito ou de outro. E vocês é que me dão forças para continuar. Obrigada, de coração. <3

4.1.11

Fim de férias

Queria levantar-se preguiçosamente, desenrolando com cuidado todos os membros do corpo do lençol amarfanhado, e sobressaltar-se com o céu já escuro. Queria lembrar-se delicadamente dos sonhos que tivera. Queria, enfim, aproveitar o último dia oficial de férias para dormir tanto quanto pudesse e voltar ao trabalho com  a pilha recarregada o suficiente pra não se importar em dormir menos de 6h/noite. Mas ninguém nunca deixa, não é?

Abriu os olhos com o som irritante do celular. Piscou de leve, bem de leve, enquanto tentava identificar de onde vinha aquela música de videogame. O sonho não tinha videogame, ou será que tinha? O que estava sonhando, mesmo? Mal humorada, atendeu o aparelhinho dos demônios. Não, acabei de acordar. É. Não, acordei com o telefone tocando. Não quero falar com ela, tô com sono. Tchau. Voltou pra cama com o celular em mãos e viu que tinha uma ligação perdida. Quem, em sã consciência, me liga às 9h45 da manhã durante as férias? Viu que era um caso antigo, já dado por encerrado. Foda-se, não vou retornar. Voltou a dormir.

Acordou meia hora depois, sem sonhos nem ânimo. Hoje, o dia vai ser uma bosta. Ligou o computador, esquentou o almoço e foi não-viver.

3.1.11

1D6

O lado iluminado te atraiu. O lado sombrio não te afastou. O lado quente te acolheu. O lado perverso te entreteve. O lado lúdico te assemelhou.

Qual o lado de mim que preciso usar para te trazer pro meu lado?

Carta para Gigi

Em quantas camas dormi desde que você se foi? Quantas lágrimas calei, quantos gritos de desespero febril engoli a seco com uma talagada de vodka ou cerveja sem gosto?

Muitas vezes me perdi, na esperança vã de encontrar um vestígio que fosse de você dentro de mim. Tentei fincar minhas bandeiras e chamar de lar todos os lugares em que estive, mas no fundo sei que nunca será para sempre. Eternamente de passagem, me jogo para lá e para cá, sem rumo, as bagagens nunca totalmente desfeitas, à espera do próximo passo.

E sempre, em meio ao caos que constantemente me cerca, pequenos souvenires de você. No armário, suas roupas que teimo em manter. Na caixa, fotos suas escondidas até de mim mesma. No meu peito, o seu símbolo. Nas minhas unhas, suas cores. No reflexo do espelho, seus genes que gritam, orgulhosos, sua herança.

E já fazem sete, sete ingratos anos, e você ainda está aqui, tão tangível quanto a fumaça do cigarro que você mesma me ensinou a tragar, tão impregnada, até em minha caligrafia, quanto a umidade nas roupas que secam nos varais de março.

Hoje choveu, e eu ouvi sua voz no sussurro do vento. Sei até, como o lavrador que sabe que o tempo vai mudar, que esta noite só pararei de chorar quando sentir seus dedos frágeis roçando meu cabelo.

Me pergunto, tolamente, se você teria orgulho de mim. Sei que sim, mas gostaria de poder ainda ouvir sua voz me dizendo isso.

Há muito mais que eu gostaria de dizer, mas tudo pode ser resumido em cinco ínfimas palavras:

Te amo. Sinto sua falta.

Um beijo,
Sua filha.


(originalmente escrito em 29/03/10)

2.1.11

Nós

Era um sonho. Era uma ilusão. Era uma brincadeira. Era disso que eu passei a última semana tentando me convencer. E aí eu ouvi sua voz. E aí o segredo foi sendo revelado. E aí, uma letra. Uma mensagem bêbada. Declarações. Madrugadas em claro. Um novo ano. E as coisas vão cada vez mais tomando forma e jeito de coisa real. Na verdade, contar pra alguém parece que torna mais real. E assim nossa história vai indo, com as páginas do meu caderno se enchendo cada vez mais de você, a sua lembrança enchendo cada vez mais meu peito e minha cabeça, as expectativas aumentando exponencialmente à medida em que os dias se passam. Eu não achei que eu ainda fosse capaz de dizer ou sentir isso, mas percebi, no pior momento possivel, que sou, e disse com todas as letras. E que você nunca duvide de que é verdade.