1.11.21

Escolhas

 Todo dia eu me saboto um pouquinho.


Todo dia eu tento, digo para mim mesmo que estou tentando, mas há uma parte de mim que se recusa a tentar e, ultimamente, esta parte tem falado mais alto do que todas as outras.


Todo dia eu me odeio um pouquinho mais por me sabotar. E nem isso me convence a parar de me sabotar.


Todo dia, me olho no espelho e se vou gostar ou não do que vejo é praticamente decidido na moeda. Há dias em que vejo a pessoa mais linda do mundo, em todas as suas facetas, e consigo enxergar todo o seu potencial de performar milagres, de criar tudo à partir do nada, de transformar poeira em diamantes. Mas há dias em que só o fracasso e a frustração me devolvem o olhar inquisitivo, e sinto o peso do julgamento por trás dos olhos, cor de mar sujo e revolto depois da tempestade, as pálpebras inchadas por falta de sono ou excesso de substâncias ou ambos. Nesses dias eu morro mais um pouquinho por dentro.


Todo dia faço uma escolha. E estas escolhas, ultimamente, até que não têm sido tão ruins. Mas a escalada do fundo do poço é longa, e difícil, e minhas unhas se quebram e meus dedos têm calos e há momentos em que escorrego. A cada dois metros que subo, uma queda -- às vezes alguns centímetros, às vezes mais do que consegui subir, por distração ou desânimo -- e assim vamos levando, a menor distância entre o ponto A e B se multiplicando infinitamente, a promessa de luz ao final da escalada me incentivando a não desistir, mas... Meus braços já não têm a força que um dia tiveram, e uma hora canso de me escorar nas paredes cheias de limo nessa subida que às vezes parece tão sem propósito.


O fundo do poço é escuro, frio e úmido, mas oferece uma superfície plana em que deitar e repousar meus músculos cansados.


Hoje fiz uma escolha da qual não me orgulho. Mas ela me abriu caminho para fazer outras escolhas, desatar outros nós, trabalhar em outros aspectos. Talvez hoje eu não tenha conseguido ganhar alguns metros nesta subida, mas pelo menos estou me esforçando para limpar o lodo entre as pedras desta parede, escavar buracos nos rejuntes onde meus pés possam se apoiar melhor. Assim, da próxima vez em que chegar aqui, talvez me seja mais confortável parar para repousar e apreciar o trabalho feito. Talvez, da próxima vez em que eu chegar a este ponto, eu seja capaz de perceber que a subida - ou a queda - está, aos poucos ficando mais fácil.


Todo dia uma escolha. E hoje, e nos últimos dias, venho escolhendo a mim mesmo, e entendendo o peso destas escolhas.


Talvez algum dia o vento volte a tocar meu rosto e eu possa ficar corado sob a luz do sol.


Talvez algum dia eu possa escolher deitar na relva, do lado de fora, onde é quente, luminoso e confortável. E talvez quando esse dia chegar eu possa deixar o conforto da fria escuridão da sabotagem definitivamente pra trás. 

5.4.21

Lobos à minha porta

Hoje eu acordei e decidi que ia me convencer de que não preciso mais de você, custe o que custar. 

Abri os olhos e abracei um gato. Não preciso da sua respiração umedecendo e aquecendo meus cabelos, e há de chegar em breve o dia em que minha cintura não se sentirá nua pela falta dos seus braços ao redor dela.

Dormir está cada dia menos difícil. Talvez chegue o dia em que eu não precise do amparo medicamentoso pra conseguir enfim deslizar para o mundo dos sonhos sem antes desaguar no travesseiro todas as lágrimas que ainda tenho dentro de mim, congeladas.

Fiz café. Coloquei eu mesma uma quantidade muito maior de canela do que deveria -- algum dia vou acertar aquele ponto exato que você coloca instintivamente, mas esse dia não será hoje. Aos poucos, eu aprendo a fazer as coisas do jeito que eu gosto, que você descobriu tão espontaneamente. Hoje consegui não olhar pra sua caneca no armário e, com isso, não senti as rachaduras se espalhando ainda mais veemente e inexoravelmente pelo meu peito.

Pé ante pé, pouco a pouco, as rachaduras vão cicatrizar.

Ontem, senti vontade de me machucar. Ontem, senti muita vontade de chorar, mas não consegui, e não houve filme, jogo, música, droga, que tirasse de mim essa vontade terrível de arranhar minhas faces até abrir um canal pelo qual as lágrimas pudessem fluir livremente.

Mas consegui resistir.

Um dia, pouco a pouco, eu vou conseguir me libertar de você.

E, quando esse dia chegar, vou rir de mim mesma e apreciar o quão ridícula fui por me apegar tanto a alguém que era pra ser só uma distração.

Mas por enquanto, e só por enquanto, vou escrever pra você palavras que você nunca vai ler. Até que eu esgote minhas palavras pra você. Até que eu consiga não mais sentir.