19.11.17

Carta aberta ao homem que me destruiu

Salvador, 04 de novembro de 2017

Quando meu telefone tocou, às 00:48 de um sábado, pulei da cama, coração imediatamente disparado.

Teria disparado de qualquer forma, independente do horário. Quase ninguém me liga, porque sabem a ansiedade que isso me causa, e quando ligam, num geral, é questão de emergência. O avançado do horário só fez intensificar a sensação de desespero.

Vou deixar a encargo de quem lê este texto imaginar o tamanho da minha surpresa ao identificar, do outro lado da linha, a voz daquele que roubou a minha fé e desconsiderou minha humanidade.

Demonstrando mais uma vez sua imbatível falta de respeito ao "não" de uma mulher e ao seu direito de decidir pelo próprio bem-estar, ele teve a pachorra de descrever o que me fez em termos de mal entendido, de desconforto acidental. "Sou eu, o cara que pisou na bola feio com você".

Deve ser legal ser homem. Dizem que eles já tem, de fábrica, a licença poética para tratar os crimes que cometem contra mulheres como um simples "vacilo".

O outro homem, outrora adormecido ao meu lado mas recém-desperto pelo toque estridente do telefone, gritava ao meu ouvido para que eu desligasse, me atordoando e acuando ainda mais. Desliguei sem ouvir o que meu estuprador tinha a me dizer, sem ter a oportunidade de desengasgar da minha garganta todos os gritos e frustrações que lá se foram alojando a cada momento em que minha vida ruía mais um pouco, ruindo para sempre em decorrência dos efeitos que o "vacilo" dele provocou.

Esta carta é minha chance de finalmente enterrar esse assunto.

Daniel disse ter pisado feio na bola comigo. Daniel entrou em contato, provavelmente pelo avançado estado etílico em que se encontrava - ninguém liga para uma pessoa com quem não fala há três anos à 1h da manhã para pedir desculpas por erros do passado se estiver sóbrio - para admitir que me arrastou para uma série de problemas que estavam acontecendo com ele e pedir desculpas por me colocar em, palavras dele, "um momento ruim". Daniel me explicou tudo isso por mensagem de texto, depois que eu desliguei o telefone na cara dele já que ele se recusou a aceitar que "não posso e nem quero falar com você agora pois acordo em 5h para ir trabalhar".

Daniel não me pediu desculpas por arruinar inexoravelmente minha tênue habilidade de manter uma ilusão de equilíbrio psicológico, nem por aleijar irreversivelmente a parte de mim capaz de confiar naqueles que se dizem meus amigos. Daniel não tentou se desculpar pela associação indelével que, graças a seus atos, meu subconsciente passou a fazer entre intimidade sexual e agressão. Daniel não pediu desculpas por reacender em mim, no meio da madrugada, essa brasa incandescente e invisível chamada "trauma". Daniel sequer teve a coragem de admitir que o nome do que ele fez comigo não é vacilo nem mancada, e sim ESTUPRO, que é criminalmente tipificado.

Daniel não me pediu desculpas pelo que ele, de fato, fez comigo. Ele pediu desculpas pelo que ele acha que fez de errado - e nada do que ele disse demonstra qualquer preocupação de fato comigo, apenas com o que ele entende ter feito. Incapaz de admitir o crime que cometeu - pois, necessário mais uma vez destacar, estupro é crime -, Daniel me expôs a mais uma iteração de seu já conhecido modus operandi de "estou ouvindo seus protestos, mas a satisfação de meu desejo imediato é mais importante" e não hesitou em me fazer reviver todo o inferno do qual passei os 3 últimos anos tentando escapar apenas para satisfazer a sua necessidade de ter uma consciência mais leve, afinal, se ele "pediu desculpas", ele não pode ser mais culpado de nada, não é?

À mim, sobrevivente do seu crime, resta apenas uma chance de resistência: negar o perdão, não apenas a ele como a todos os outros homens, que por associação direta ou similitude de ações, a mim convém chamar de seus companheiros.

Não o faço por rancor.

O faço por saber que, se arrependimento real houvesse, essa ligação no meio da madrugada teria sido diretamente para a polícia, e não para mim, pois haveria o reconhecimento do crime cometido e do sofrimento causado.