13.10.14

11 anos

Era uma segunda-feira chuvosa e, pra variar, acordei em cima da hora de ir pra escola depois de uma madrugada perdida na frente do computador. Abri a porta do quarto, mas o silêncio era tanto que não quis acordá-la. Escrevi um bilhete, deixei em cima da mesa ao lado de um prato de mingau feito com amor (porque sabia que, com sua tireoide inchada como estava, nada mais sólido que isso passaria), tomei meu banho e cheguei até a porta para ir cuidar da minha vida.

Foi mais ou menos aí que o interfone tocou, acho. As lembranças desse trecho - desse dia como um todo, aliás - são bastante confusas, por mais que por muito tempo eu as tenha revirado e analisado por todos os ângulos possíveis pra tentar me convencer de que a culpa não foi minha. O interfone tocou, e era da portaria, avisando que vinha um moço pintar as paredes da varanda. Fiquei chateada, porque eu não poderia ir pra escola e deixá-la dormindo em paz, depois de termos passado o domingo inteiro no hospital brigando com o sistema público que sempre foi uma bosta, com um estranho dentro casa. Mandei o rapaz subir.

Abri a porta de seu quarto de novo. "Mãe", eu disse da porta, "acorda, o moço da varanda tá aí." Silêncio. Silêncio absoluto, em contraste gritante com os roncos que ecoaram a madrugada inteira, devido à sua dificuldade em respirar. Senti um calafrio. Me aproximei. "Mãe", chamei de novo. Nada. Encostei a mão em seu braço, pra tentar acordá-la com carinho, como nas tantas vezes que a acordei nos dezessete anos anteriores, tentando não assustar. Seu braço estava frio. Frio demais. Dei a volta na cama, e os olhos e a boca abertos, sem umidade, sem vida, me confirmaram o que eu tive medo de ser verdade na hora em que chamei da primeira vez.

Lembro de minha reação ter sido, imediatamente, calmamente, sem escândalo, ir até a varanda e chamar o moço. "Moço, o senhor pode me fazer um favor? Desce e chama o seu Zé, lá na portaria. Acho que minha mãe morreu e somos só nós duas aqui e eu não sei bem o que fazer." Calmíssima. Fria como o gelo. Dentro da minha cabeça, eu ainda não conseguia processar o que estava acontecendo. O rapaz também não se abalou. Acenou com a cabeça, disse "tudo bem", e saiu, sem um toque no braço por simpatia, sem olhar muito no meu rosto. Parando pra pensar agora, talvez ele tenha ficado um pouco perturbado de ouvir uma notícia dessas saindo da boca de uma menina de 17 anos sem uma lágrima nos olhos, logo no começo do seu dia de trabalho.

Assim que o rapaz saiu, o telefone tocou, e era minha tia, querendo saber como minha mãe estava. Ainda no estado catatônico em que me encontrava - acho que só isso explica tamanha frieza, o choque - expliquei que eu não tinha conseguido acordar ela, que ela estava deitada com a boca e os olhos abertos, e que eu achava que ela não estava respirando.

Não sei se foram minutos ou horas que se passaram até chegar alguém lá em casa. Fui pro computador, mandei mensagem para o namorado que morava em outro estado explicando o que tinha acontecido, sentei no sofá e lá fiquei, esperando. Não tinha mais nada a fazer. A escola certamente já tinha sido avisada - a filha da tia que ligou era minha professora - e eu não conseguia pensar em mais ninguém, exceto os amigos da escola que provavelmente ouviriam falar disso na aula, que eu gostaria de notificar. Nem pro meu pai me ocorreu ligar. Não me ocorreu sequer fechar os olhos dela. Fiquei sentada, em estado de choque absoluto, enquanto iam e vinham vizinhos, parentes e amigos pra prestar homenagens e tentar ajudar no que fosse. Por horas fiquei sentada, até a mãe de uma amiga aparecer lá em casa com ela e com outro amigo nosso para me arrancar de casa enquanto os adultos cuidavam dos problemas, e depois me entregar nas mãos da tia que cuidaria de mim até o final do ano letivo.

Sequer uma lágrima foi derramada nesse dia. Ou nos próximos.

Não chorei no enterro, não chorei na missa de sétimo dia, não chorei nem fraquejei nem me descuidei de minhas responsabilidades por um minuto sequer. Dois dias depois eu já tinha voltado pra escola e a vida seguia normalmente. Eu não era menina de chorar. Era tão tomboy que me considerava um menininho. E meninos não choram.

Até que uma noite, duas semanas depois, acordei no meio da noite e, pela primeira vez, a ficha caiu. Me dei conta de que estava dormindo num colchão da sala da minha tia, a poucos meses de me mudar de cidade para morar com meu pai, deixando pra trás todos os amigos e família, e que isso me agoniava e me desesperava. Digo que a ficha caiu porque foi nesse momento que me dei conta de que tudo o que eu precisava era do colo da minha mãe, pra desabafar toda a estranheza dos últimos dias e do quanto eu estava odiando tudo aquilo. E que eu nunca mais teria o colo dela.

Eram 11h da noite do dia 30 de outubro e eu só parei de chorar às 5h da manhã.

Desde então, chorei várias vezes, por motivos variados - de dor, de solidão, de raiva, de emoção, de felicidade, de saudades dela, até. Mas nenhum choro foi tão demorado nem tão sofrido quanto esse. Foi meu primeiro choro de "nunca mais".


Hoje completou 11 anos. E até terminar de escrever esse texto eu achava que não conseguiria mais chorar por isso.

A última foto juntas.

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