16.3.12

Selvagem na caixa de vidro

Não foi sempre que fui assim. Nem sempre fui este meio-ser de cores emprestadas e olhos baços de quem já viu o mundo de todos os ângulos e a quem nada mais choca ou surpreende. Nem sempre encarei quedas e fraturas expostas e feridas sangue podridão com a naturalidade de quem mergulha numa piscina num dia de sol escaldante. Nem sempre, eu. Esse eu é coisa nova, fruto da modernidade, vítima da sociedade, produto do meio, sei lá, chamem como quiserem, mas essa porra dessa criatura que saltita e grita e brinca e ostenta uma felicidade quase real não sou eu, nunca fui, e nem me perguntem porque passei a ser. É um daqueles mistérios que nem Freud, nem a bíblia e muito menos Walter Mercado explicam.

Eu sei lá, na real. Eu olho pra trás e parece que não é comigo. Não era eu. É uma coisa engraçada, essa dualidade toda. Eu sei que essa eu que escreve não é a mesma que escrevia há um ano. Há dois anos, sei lá. Bota mais tempo nisso aí. Faz tempo que eu não sou eu. Tenho sérios problemas identitários. Eu olho pras partes mais tensas do meu passado e... com quem foi mesmo que isso aconteceu? Parece que tem uma parede entre eu e a antiga eu. Uma parede de vidro, daqueles vidros blindados e foscos de um lado, tipo de interrogatório, e eu sou da lei e tô vendo tudinho acontecendo mas não posso me meter e posso inclusive fingir que nem é comigo.

Só que eu cansei de fingir que nem é comigo, porque eu cansei de viver como se estivesse constantemente sob efeito de anestesia. Cansei de observar tudo com a fria indiferença de quem se sabe distanciado. Quero o ardor da experiência, quero a dor da solidão, quero a pontada amarga da flecha dilacerando novamente minha carne e vertendo em sangue as memórias da minha alma.

Sem o pecado, sem a paixão, sem o oculto: sem infelicidade. E assim sigo clamando para mim meu direito inalienável de ser infeliz. Só assim vale a pena viver.

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