19.1.11

Carlos

A primeira memória que tenho do Carlos é de chegar à noite na casa de Iguaba com meus pais, e ele estar sentado no sofá da sala assistindo televisão. Era uma televisão bem velha, mesmo pra época - devia ser o começo dos anos 90 -, daquelas que você precisava girar o botão seletor pra mudar de canal. Ele estava sentado com um short meio encardido de algodão, a barriga bastante protuberante, meio confortável demais pra quem ia receber visitas. Minha mãe disse a ele, "olha, a Aline terminou o Jardim!" Eu esperei um "parabéns", ou algo assim. Em vão, claro. Tudo o que ele me disse em resposta foi, "e não me traz nenhuma flor pra mostrar?"

Lembro de Carlos indo nos visitar no apartamento em Vila Isabel. Nem vou entrar no mérito da questão de lembrar claramente da jaqueta impermeável vermelha que ele usava - ele esqueceu a bendita jaqueta lá em casa, e alguns anos depois me apossei dela "porque parece a jaqueta do Kaneda". Um dia, tentei devolver a ele, e ele recusou. Disse que ficava bem melhor em mim do que jamais havia ficado nele.

Lembro das histórias absurdas que o Carlos costumava contar. Sobre dividir um trailer em Miami com duas putas cubanas. Sobre o gerente de banco nos EUA que cumprimentava os clientes brasileiros acenando alegremente, "please, between." Sobre os lovebirds que entravam no motor dos carros. Sobre como os companheiros de trabalho dele não conseguiam pronunciar "Souza" direito.

Lembro dele indo me levar no colégio todo dia de manhã quando éramos vizinhos. De como a cada dia ele me cumprimentava em uma língua diferente, e eu tinha que saber responder. De como isso me influenciou a querer aprender várias, diversas línguas. Lembro dele me esperando na porta da escola, comendo um pastel de carne na tia que vendia lanche e contando seus muitos causos pros meus colegas mais novos, que o adoravam. Lembro de seu Supermini vermelho caindo aos pedaços. Lembro dele me chamando de gótica - por causa das roupas pretas e muitos acessórios prateados - e de comunista - por causa do cabelo vermelho - e se acabando de rir em todas as vezes que me tratava assim. Das frutas frescas e milhos verdes que me levava às tardes. Do arroz que ele pegava na minha panela por preguiça de fazer o próprio. De me ensinar a fazer amizade com os cães de guarda, a ponto de eles se tornarem meus inseparáveis no ano em que fiquei por lá.

Lembro da última vez em que o vi. Dois dias antes, ele estava no hospital. "Acho que, desta, eu não passo, perua", ele me disse. "Vaso ruim não quebra, velho safado. Daqui que eu volte pra Salvador você já vai estar em casa", disse eu. Ele riu, disse que achava difícil, mas dito e feito. Dois dias depois, já estava em casa e dirigindo. Me despedi dele dizendo que era bom que ele durasse até o natal, que quando eu voltasse queria vê-lo bem.

E passou o natal, e eu não consegui ir vê-lo. Não consegui cumprir minha parte do acordo. Ele cumpriu, mas não pôde se aguentar até que eu fosse capaz de ir visitá-lo. E eu nem posso culpá-lo. Acho que exigi demais...

Carlos Eugênio Ferreira de Souza. Meu avô. Um belo de um filho da puta, dado a heresias e completamente tarado, daqueles que moram pra sempre no coração da gente. Nem vou ousar dizer "que deus o tenha", porque pra ele isso era ofensa, que deus não existe e que fodam-se esses retardados que acham que tudo é culpa de um deus inexistente. Não acho que ele se ofenda, no entanto, se eu disser que espero que ele esteja no melhor lugar em que puder estar. E que espero reencontrá-lo algum dia, e sentar e relembrar as mesmas histórias que ele insistia em repetir quinhentas vezes.

E, até lá, só resta a saudade. E as lágrimas que ainda não consegui chorar, por ainda estar em choque com a notícia de sua morte, tão recente, tão esperada, tão surpreendente. Descansa em paz, vô.

3 comentários:

Croc disse...

=~

HAM disse...

Enquanto lia, visualizava uma garotinha crescendo na preseça de um "vô" mais que especial...

Unknown disse...

Eu fiquei meio na dúvida enquanto lia. Se ria, chorava, ficava com raiva ou sei mais o quê. Mas até que gostei desse sujeito.